Marcha das Vadias 2013: a ironia como forma de luta
A Marcha das Vadias de Curitiba 2013 repetiu o sucesso das manifestações anteriores (2011 e 2012) e consolidou sua presença no cenário e calendário políticos da cidade. Agora todxs sabemos que o mês de Julho terá sempre um dia de sol e calor em pleno inverno, uma dádiva para todxs que vêm para as ruas e gritam em alto e bom som contra a violência que oprime mulheres, gays, lésbicas, travestis e transexuais, enfim, todxs que sofrem quotidianamente com a discriminação, a desigualdade e o machismo nosso de cada dia.
O movimento segue firme e forte, mantendo suas características de origem: a-partidário; organizado internamente sem hierarquias, de modo horizontal; aberto a quem se comprometa com a pauta de lutas do coletivo; avesso a toda forma de discriminação de gênero; contra a clausura no interior de identidades sexuais bem definidas. Todas estas características fazem da Marcha das Vadias um coletivo libertário, criativo, anárquico, crítico, sarcástico, alegre, divertido e ultra-politizado. Política radical e sem sisudez, algo difícil de se encontrar nesse mundo. "O movimento é sexy", como dizia um cartaz.
O improviso é a tônica das manifestações de rua: você traz seu cartaz ou se apossa de um dos tantos feitos previamente pelxs voluntárixs. Quem participa? Quem quiser combater o machismo e a violência: mulheres, homens, jovens, adultos, idosos, crianças... O clima festivo e alegre contrasta com as denúncias políticas: o estupro considerado como regra de tratamento das mulheres, o seu assassinato, assim como o de toda a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis)
Mas creio que o principal está na relação que cada um estabelece com seu corpo, transformado em arma de combate ao machismo e às hierarquias de gênero que abusam de todxs que, de um modo ou de outro, escapam a padrões normalizadores (e eles são muitos, os padrões e xs desviadxs e desviantes).
Xs manifestantes da Marcha das Vadias extraem a potência de sua luta da inversão consciente de valores morais e políticos bem estabelecidos. Mulher tem de ser bem-comportada? Então elas tiram a roupa e gritam. Homem tem que ser másculo e viril? Então eles pintam as unhas e passam batom, negando publicamente a cultura do machismo em que foram criados. O corpo feminino é visto como um altar onde apenas um 'santo' pode reinar? Então elas gritam que o corpo é delas, lhes pertence e elas o dão apenas a quem quiserem e quando quiserem. Vadias são seres abjetos, de mínimo valor social? Então elas convertem a vadia na mulher forte e livre, dona de seu corpo e de seu prazer. O aborto segue proibido? Então elas exigem que a prática seja despenalizada imediatamente, que o Estado assuma sua laicidade e que a Igreja tire o rosário de cima de seus ovários. As mulheres e a população LGBT são as vítimas preferenciais da violência e da morte? Então elxs exigem respeito e se afirmam insubmissxs, inconformadxs. E por aí vai.
Tudo isto é muito importante e certamente ainda há muito mais o que dizer e pensar a respeito desse coletivo político importantíssimo. Gostaria de concluir essas considerações vadias ressaltando algo que chamou minha atenção desde o começo. Falo da ironia, da liberdade, do bom humor e da coragem de quem expõe o corpo nu para fazer frente a todas as violências que agridem, destroem, maltratam os corpos das mulheres e LGBTs. Um dos gritos de guerra mais explícitos a esse respeito é: "Eu sou vadia de respeito! Pra vir pra rua, tem que ter peito!" Está (quase) tudo dito aí. Parece simples, mas não é. Desnudar-se no Brasil é um ato político de primeira grandeza, dada a carga de erotização publicitária e de violência sexista e moralista que inunda nossa cultura.
E cumprir esse ato corajoso de maneira tão livre e espontânea, ironizando a violência e o preconceito, é algo que remete a um tempo passado quando a memória onírico-política das insurreições libertárias pós-68 ainda não tinha sido apagada pelo surto da AIDS e pela hegemonia mundial do neoliberalismo, entre finais dos 80 e começo dos 90. Eu sei, os tempos são outros, xs jovens que saem às ruas têm outros heróis e heroínas, outras pautas, e penso mesmo que são mais conscientes e ousados em questões de política feminista e de gênero do que o foi a minha geração, para a qual a política ainda tinha contornos e canais mais tradicionais e bem estabelecidos.
Mas diante da cada vadia ou vadio que vejo desfilar pela rua lembro-me dos Dzi Croquettes (ver post neste blog); lembro-me também dos anos em que pertenci a um DCE de inspirações e práticas anarquistas, em que os meninos convocavam assembléias usando batom na boca, o mesmo batom utilizado nas sessões do Conselho Universitário da Unicamp, diante de um reitor atônito e profundamente irritado. Enfim, cada vez que vejo uma vadia ou um vadio passando ao meu lado, gritando a plenos pulmões, lembro que um dia também fui jovem, e vejo que algo da minha juventude ainda me acompanha. E isso me faz mais feliz.