domingo, 14 de julho de 2013

Marcha das Vadias 2013

Marcha das Vadias 2013: a ironia como forma de luta



A Marcha das Vadias de Curitiba 2013 repetiu o sucesso das manifestações anteriores (2011 e 2012) e consolidou sua presença no cenário e calendário políticos da cidade. Agora todxs sabemos que o mês de Julho terá sempre um dia de sol e calor em pleno inverno, uma dádiva para todxs que vêm para as ruas e gritam em alto e bom som contra a violência que oprime mulheres, gays, lésbicas, travestis e transexuais, enfim, todxs que sofrem quotidianamente com a discriminação, a desigualdade e o machismo nosso de cada dia.



O movimento segue firme e forte, mantendo suas características de origem: a-partidário; organizado internamente sem hierarquias,  de modo horizontal; aberto a quem se comprometa com a pauta de lutas do coletivo; avesso a toda forma de discriminação de gênero; contra a clausura no interior de identidades sexuais bem definidas. Todas estas características fazem da Marcha das Vadias um coletivo libertário, criativo, anárquico, crítico, sarcástico, alegre, divertido e ultra-politizado. Política radical e sem sisudez, algo difícil de se encontrar nesse mundo. "O movimento é sexy", como dizia um cartaz. 


O improviso é a tônica das manifestações de rua: você traz seu cartaz ou se apossa de um dos tantos feitos previamente pelxs voluntárixs. Quem participa? Quem quiser combater o machismo e a violência: mulheres, homens, jovens, adultos, idosos, crianças... O clima festivo e alegre contrasta com as denúncias políticas: o estupro considerado como regra de tratamento das mulheres, o seu assassinato, assim como o de toda a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis)


Mas creio que o principal está na relação que cada um estabelece com seu corpo, transformado em arma de combate ao machismo e às hierarquias de gênero que abusam de todxs que, de um modo ou de outro, escapam a padrões normalizadores (e eles são muitos, os padrões e xs desviadxs e desviantes). 
Xs manifestantes da Marcha das Vadias extraem a potência de sua luta da inversão consciente de valores morais e políticos bem estabelecidos. Mulher tem de ser bem-comportada? Então elas tiram a roupa e gritam. Homem tem que ser másculo e viril? Então eles pintam as unhas e passam batom, negando publicamente a cultura do machismo em que foram criados. O corpo feminino é visto como um altar onde apenas um 'santo' pode reinar? Então elas gritam que o corpo é delas, lhes pertence e elas o dão apenas a quem quiserem e quando quiserem. Vadias são seres abjetos, de mínimo valor social? Então elas convertem a vadia na mulher forte e livre, dona de seu corpo e de seu prazer. O aborto segue proibido? Então elas exigem que a prática seja despenalizada imediatamente, que o Estado assuma sua laicidade e que a Igreja tire o rosário de cima de seus ovários. As mulheres e a população LGBT são as vítimas preferenciais da violência e da morte? Então elxs exigem respeito e se afirmam insubmissxs, inconformadxs. E por aí vai.

A Marcha das Vadias vale-se de uma estratégia política inovadora ao ocupar e politizar as ruas, expondo os corpos nus (ou vestidos) dxs manifestantes a fim de veicular mensagens políticas de denúncia de todas as formas de violência de gênero. Distintamente dos movimentos identitários de minorias, que tendem a privilegiar os canais burocráticos da representação política institucionalizada em sua atuação, a Marcha das Vadias faz da rua o local da política e do próprio corpo o suporte vivo de veiculação de uma outra relação entre vida e política: uma política da vida escandalosa ou da vida como escândalo político, que muito faz lembrar as considerações de St Foucault sobre as posteridades do cinismo.  


Tudo isto é muito importante e certamente ainda há muito mais o que dizer e pensar a respeito desse coletivo político importantíssimo. Gostaria de concluir essas considerações vadias ressaltando algo que chamou minha atenção desde o começo. Falo da ironia, da liberdade, do bom humor e da coragem de quem expõe o corpo nu para fazer frente a todas as violências que agridem, destroem, maltratam os corpos das mulheres e LGBTs. Um dos gritos de guerra mais explícitos a esse respeito é:  "Eu sou vadia de respeito! Pra vir pra rua, tem que ter peito!" Está (quase) tudo dito aí. Parece simples, mas não é. Desnudar-se no Brasil é um ato político de primeira grandeza, dada a carga de erotização publicitária e de violência sexista e moralista que inunda nossa cultura. 


E cumprir esse ato corajoso de maneira tão livre e espontânea, ironizando a violência e o preconceito, é algo que remete a um tempo passado quando a memória onírico-política das insurreições libertárias pós-68 ainda não tinha sido apagada pelo surto da AIDS e pela hegemonia mundial do neoliberalismo, entre finais dos 80 e começo dos 90. Eu sei, os tempos são outros, xs jovens que saem às ruas têm outros heróis e heroínas, outras pautas, e penso mesmo que são mais conscientes e ousados em questões de política feminista e de gênero do que o foi a minha geração, para a qual a política ainda tinha contornos e canais mais tradicionais e bem estabelecidos. 
Mas diante da cada vadia ou vadio que vejo desfilar pela rua lembro-me dos Dzi Croquettes (ver post neste blog); lembro-me também dos anos em que pertenci a um DCE de inspirações e práticas anarquistas, em que os meninos convocavam assembléias usando batom na boca, o mesmo batom utilizado nas sessões do Conselho Universitário da Unicamp, diante de um reitor atônito e profundamente irritado. Enfim, cada vez que vejo uma vadia ou um vadio passando ao meu lado, gritando a plenos pulmões, lembro que um dia também fui jovem, e vejo que algo da minha juventude ainda me acompanha. E isso me faz mais feliz.







sexta-feira, 12 de julho de 2013


Feminismo vadio

Gazeta do Povo em 12.07.2013

Em 2011, no Canadá, um grupo de mulheres saiu às ruas para gritar “basta!” à cultura da violência que, além do mais, faz das vítimas as culpadas pelas agressões: “Ninguém mandou se vestir como uma vadia!” Eis a lógica machista, que não apenas justifica, mas atenua e torna natural a violência. A cada dia milhares de mulheres são assassinadas, violadas, espancadas, humilhadas, apenas por serem mulheres. Os agressores são homens criados na cultura da violência e do machismo.
O movimento feminista sempre lutou contra tais violências, de modo que a novidade da Marcha das Vadias é sua estratégia do combate. Se a violência masculina culpa a mulher agredida, chamando-a de vadia, então será preciso inverter os sinais e fazer da denúncia da violência uma arma de afirmação do poder feminino. Foi assim que a Marcha das Vadias se apoderou do termo “vadia” e fez dele um poderoso instrumento de poder. A Marcha das Vadias que ocorre em Curitiba amanhã é a culminação de um conjunto de discussões, ações jurídicas, além de ações educativas nas escolas e universidades.
A Marcha é um multifacetário coletivo feminista de combate às violências de gênero, que atingem também a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Ela nos ensina que fazer política é ocupar as ruas e praças com corpos vestidos e desnudos, que se fazem presentes para exigir uma outra vida. Queremos poder transitar pelas cidades a qualquer hora, com qualquer traje, independentemente da orientação sexual, da identidade de gênero, do pertencimento de classe e raça/etnia, sem sermos violentadas, agredidas, mortas.
Também lutamos por direitos já tão restringidos e que correm o risco de ser retirados, como no caso do Estatuto do Nascituro, que faz do embrião um sujeito de direito e usurpa à mulher o direito conquistado de abortar em decorrência de um estupro. Para não falar na urgência de se legalizar o aborto e transformá-lo em prática segura. Por tudo isso, “se ser vadia é ser livre, então eu sou vadia!”
A vadia liberta é aquela que ama seu corpo como ele é e faz dele o suporte da denúncia de todas as violências. E é incrível que uma perna ou um seio à mostra sejam mais escandalosos que a despudorada tolerância com que cobrimos a violência que dilacera o corpo feminino. Algumas mulheres ainda se incomodam com a denominação de vadia, pois foram ensinadas a fugir dela a todo custo. O problema é que nunca houve para onde fugir do machismo, que tem de ser combatido invertendo-se as regras do jogo, embaralhando-se as cartas, dando-se as cartas. Não tardará e também elas se juntarão aos homens que já agora se afirmam feministas e “vadios”, participantes da Marcha. A luta das mulheres feministas é a luta de todos e todas que compreenderam a dignidade do combate à violência e à discriminação de gênero. Amanhã, a partir das 11 horas, venha para a Praça da (agora) Mulher Nua: uma “vida vadia” é mais alegre e interessante que ficar repetindo preconceitos e violências.
Maria Rita de Assis César, professora do Setor de Educação e do programa de pós-graduação em Educação da UFPR, é coordenadora do Laboratório de Investigação sobre Corpo, Gênero e Subjetividade na Educação (Labin).