domingo, 18 de abril de 2010

Lamento

“Mas Assum Preto, cego dos óio, num vendo a luz, ai, canta de dor...” Com acordes experimentais tropicalistas, em 1970 essa canção ganhava territórios que iam além daquele sertão que queima igual fogueira de São João... Uma televisão ainda incipiente e aberta à experimentação deixava escapar imagens e sons que denunciavam os duros anos de ditadura militar, quando muitos cantavam de dor nos porões escuros... Com acordes minimalistas, o baixo elétrico pontua notas negras que acompanham o estampido seco de uma percussão que reverbera a tiros e pauladas. A tristeza pelo pássaro torturado, "mardade das pió" cometida por brutas mãos ignorantes, está explícita na voz e nos gestos de Gal Costa. Estávamos no auge dos 'anos de chumbo' de uma ditadura que furou os olhos, corpos e almas de uma juventude que experimentava a liberdade e a criação. Havia, de fato, muito que lamentar.

Da maior importância...


... não é apenas o título da canção de Caetano Veloso interpretada por Gal Costa. "Da maior importância" permite pensar aquilo que deixamos de ser, deglutidos por um projeto de modernidade que dificulta a possibilidade de experimentar, expressar e criar. O que foi sumindo de nosso horizonte cultural não foi apenas a limpidez da voz de Gal, mas a produção de um certo modo de ser, aqui modulado pelo Tropicalismo, isto é, pela contracultura tupiniquim, embalada pela mistura do acordeão de Dominguinhos e das cordas eletrificadas. Para não falar do olhar de Gal, oscilando entre a sedução, a provocação e o desafio. Estávamos nos anos 70 e aquele olhar, aquela boca e aquelas pernas ainda eram nossos desconhecidos, ainda não haviam sido capturados pela indústria do entretenimento cultural. Como não vislumbrar na atitude de Gal, e também na letra desavisada de Caetano, aquele "papo de otário" que "ia sendo bom", um espaço político alternativo aos horrores da ditadura?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

El viaje a Cuba 3: impressões políticas




Em Cuba a política pretenderia estar em toda parte, coesa em torno aos ideais supremos do trabalho, estudo e fusil...mas é claro que isso não é assim, felizmente. A vida segue seu curso cotidiano e o visitante mais atento rapidamente percebe que há um abismo entre a política oficial, propagada muitas de vezes de maneira artesanal em cartazes e pinturas de parede, e as vicissitudes diárias de um povo que enfrenta inúmeras dificuldades econômicas sem abaixar a cabeça e com um senso de humor cáustico que tem lá a sua graça. Mas não é fácil apresentar mais do que impressões vagas a respeito da atual situação política em Cuba. Que se trata de uma ditadura, apenas los muy convictos o negariam. Por outro lado, quem reproduz o discurso fácil que condena Cuba a não ser mais que uma reminiscência do antigo bloco soviético, em pleno Caribe, perde de vista especificidades que, sim, fazem a diferença. Esta é uma ressalva importante, tanto mais agora que se aproximam as eleições presidenciais no Brasil e se multiplica o coro dos intelectuais ávidos por "apresentar sua solução inteligente no bloqueio a Cuba", para recordar a fina ironia de Caetano Veloso e Gilberto Gil na canção 'Haiti'.
Por certo, a Cuba de hoje em nada se assemelha a uma sociedade militarizada ou policiada de maneira ostensiva, e a propaganda política vem diminuindo a olhos vistos. Evidentemente, o acesso à informação extra-oficial é difícil, e será tanto mais difícil quanto mais tais informações se mostrarem críticas ao regime. Para saber algo mais a respeito da vida cotidiana e política em Cuba é preciso conversar com os cubanos, e isto tampouco é fácil para o turista, a não ser que ele consiga estabelecer alguma cumplicidade cuidadosamente tramada. Se isto ocorre, então pode-se aprender algo mais, o que também significa que há redes clandestinas de difusão de informação no país. A propósito, a visita a Cuba instiga desconfianças em relação à nossa suposta liberdade de informação: sabemos tudo, ao mesmo tempo em que não sabemos nada, pois as informações nos chegam pautadas e diluídas. Para não falar de nossas liberdades políticas: podemos tudo, ao mesmo tempo em que não podemos nada, dada a ausência de projetos políticos coletivos. Em suma, Cuba faz pensar, e muito, nos limites políticos a que estamos sujeitos no assim chamado 'mundo livre'.
Cuba é, de fato, uma ilha isolada do mundo, mas tal isolamento se fecha em torno a dois pólos ideológicos contrapostos que se complementam e se unificam: a burocracia partidária de Cuba e a extrema direita dos Estados Unidos. Por um lado, a burocracia cubana sobrevive e se alimenta politicamente das dificuldades econômicas impostas pelo terrível bloqueio econômico, pois ele propicia condições adequadas para a suposta 'unidade' do povo contra o poderosíssimo inimigo. Por outro lado, a extrema direita republicana sabe que jamais dobrará Cuba a seus interesses predatórios, mas interessa manter o bloqueio draconiano intocado, pois ele sustenta sua hegemonia política em certos estados norte-americanos. Em suma, o fim do bloqueio não interessa a nenhuma das partes.
Escorada na relativa melhoria econômica propiciada pela exploração do turismo, resta saber por quanto tempo será possível à burocracia manter inalterada a situação política. Afinal, a mesma abertura econômica que traz o turista e que melhora a infraestrutura também traz consigo a expansão (ainda limitada) da internet, da televisão a cabo nos lobbies abertos e públicos dos hotéis, além de propiciar maior contato da população com os hábitos e gostos dos estrangeiros. Hoje é evidente que a relação dos cubanos com a memória e o legado da revolução está diretamente associada à idade dos indivíduos. Aqueles que cresceram em meio à abertura econômica, por exemplo, já seguem as estrelas do futebol europeu, vestem-se com a roupa do 'inimigo' e possivelmente sonham com um mundo mais ágil e de consumo diferenciado. Por outro lado, aqueles que viveram o auge do legado da revolução e suportaram as agruras da fome durante o período especial (1990-1995) temem, muito justamente, que uma reviravolta súbita ponha a perder o sistema educacional e de saúde do país, certamente melhores do que os de muitíssimos países e regiões do Caribe e da América Latina. A sorte está lançada.

De volta aos passos perdidos


Confesso que quando iniciei a leitura de Os passos perdidos não sabia se chegaria a terminá-lo. Parecia-me que a obra tinha sua data de validade expirada. Por certo não estava em questão a habilidade narrativa de Carpentier, cuja aptidão para a recriação barroca de situações fantásticas é inegável e com facilidade atinge o virtuosismo. Veja-se, por exemplo, seu romance Concerto Barroco, de 1974, publicado no Brasil em 2008 pela Companhia das Letras. Em uma cena memorável, Carpentier faz encontrarem-se e tocarem juntos Vivaldi, Scarlatti e Haendel, aos quais se somam um rico viajante mexicano fantasiado de Montezuma (estamos em pleno Carnaval de Veneza) e seu pagem negro cubano. A certa altura, para escapar ao ruído dos festejos de rua, os personagens refugiam-se no interior de um convento. Arma-se então um concerto de improviso, à maneira de uma jam session jazzística, que culmina com o negro percutindo ritmos caribenhos que desafiam a destreza e a diligência dos compositores, do coro e da orquestra. A cena se encerra num ritual carnavalesco mais do que profano, em que todos dançam e serpenteiam pelo convento, conduzidos por Montezuma.
O problema com Os passos perdidos me parecia ser a 'inteireza' metafísica de seu narrador, sempre completo, certo e seguro de si em seu tédio e em seu júbilo, em seu espanto, em seu medo e em suas incertezas. Ultimamente vinha lendo muito Roberto Bolaño, Ricardo Piglia e Roberto Arlt, o que talvez explique minha desconfiança face à aparente densidade subjetiva do narrador de Carpentier. Veja-se a descrição do tédio burguês do artista de vanguarda: "Quando se festejava o meu aniversário em meio às mesmas caras, nos mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro, assaltava-me invariavelmente a idéia de que isto só diferia do aniversário anterior na aparição de uma vela a mais sobre o bolo cujo sabor era idêntico ao da vez precedente" (p. 11). A descrição é exata, mas demasiado bela, demasiado consciente, demasiado refletida, por assim dizer. Ou então, leia-se essa descrição da nostalgia: "Um doloroso amargor avolumou-se em minha garganta ao evocar, através do idioma de minha infância, tantas coisas juntas. Decididamente, estas férias me enterneciam." (p. 14). Ou a descrição de júbilo no primeiro encontro com o rio caudaloso que começa a penetrar a selva amazônica: "Nada faz ruído, nada se choca com nada, nada roda nem vibra. Quando uma mosca em vôo dá com uma teia de aranha, o zumbido de seu horror adquire o valor de um estrondo. (...) Permaneço mais de uma hora aqui, sem me mover, sabendo quão inútil é andar onde sempre se estará no centro do contemplado." (p. 119) Mesmo as dúvidas e o medo, ao penetrar no coração da selva, são expressas de maneira perfeita e completa: "Já não se sabia o que era da árvore e o que era do reflexo. Já não se sabia se a claridade vinha de baixo ou de cima, se o teto era de água, ou a água, solo; (...) Com o transtorno das aparências, nessa sucessão de pequenas miragens ao alcance da mão, crescia em mim uma sensação de desconcerto, de total extravio, que resultava indizivelmente angustiosa." (p. 174) Recordem-se ainda as evocações do amor, da pureza, do prazer e da felicidade descobertos em plena selva amazônica, que mencionei na última postagem sobre o assunto (Correspondências I).
Ocorre que ao narrador impor-se-á o mesmo destino trágico a que já haviam sido submetidos os heróis do relato homérico: aqueles que, tendo se fartado do lótus, foram depois obrigados a renunciar ao êxtase. Após sua conversão às forças primordiais da natureza, o narrador será arrancado de seu idílio e todos os seus esforços posteriores por recuperá-lo fracassarão. Ocorre, pois, que a novela se chama, ao fim e ao cabo, Os passos perdidos. O que propriamente se perde enquanto acompanhamos tais passos? Justamente aquela integridade subjetiva substancial que acompanhara a voz do narrador ao longo do romance. Ao terminar a leitura, estamos uma vez mais às voltas com os farrapos maltrapilhos de uma subjetividade esgarçada e descosturada por dentro. Chegamos, pois, ao limiar dos romances latino-americanos que nos são contemporâneos. Por um caminho elíptico e cheio de desvãos, os passos de Carpentier me trouxeram de volta aos personagens anêmicos de Piglia e Bolaño.

sábado, 10 de abril de 2010

El viaje a Cuba 2




Ao longo dos anos 70 e 80, a esquerda brasileira jamais abordou a questão da homofobia em Cuba, visto que isto sequer era uma questão para os PCs e seus derivados político-partidários. Assim, quando foi lançado no Brasil, o filme Morango e Chocolate causou impacto. Foi talvez o primeiro contato de milhares de brasileiros com o cinema cubano e com a repressão aos gays na ilha de Fidel. O diretor, Tomás Gutierrez Álea, era já consagrado em Cuba, talvez o principal nome de um país que, principalmente depois da Revolução, prezou a sétima arte e nunca deixou de ter uma produção consistente e constante desde então. Morango e Chocolate, co-dirigido por Juan Carlos Tabío (essa colaboração se estenderia ao filme Guantanamera, de 1995), aborda a conturbada relação entre um jovem universitário, militante político, e um homem mais velho, homossexual e ligado ao meio das artes (o excelente Jorge Perugorría). O filme é de 1993, época do chamado 'período especial', eufemismo com o qual o governo cubano denominou a crise econômica avassaladora que se abateu sobre a ilha após o fim da URSS, ao passo em que a ação narrada se dá no ano de 1979, época áurea do socialismo cubano movido a dinheiro soviético. O contraste entre o refinamento cultural do crítico de arte e a ignorância preenchida de toscos preconceitos doutrinários é impressionante, resultando numa denúncia cruel da pobreza intelectual da revolução cubana. É de se pensar que um filme dessa natureza somente chegou ao público porque seu diretor tinha larga história no cinema cubano - Memórias do subdesenvolvimento é de 1968, mas sua produção retrocede ao final dos anos 40) - e talvez também porque então eram precisas válvulas de escape em meio à fome e ao caos. Os dois personagens se encontram na Sorveteria Copelia, um marco histórico na cidade de Havana. Durante o pior momento da crise, as filas - que ainda hoje estão lá, mas são pequenas - eram imensas, visto que a sobremesa se transformara em prato principal.
Outro filme que projetou a questão da homofobia em Cuba foi Antes que anoiteça, de Julian Schnabel (2000). O filme é irregular e muitas vezes se perde em seu intento de adaptar para o cinema a auto-biografia do poeta Reynaldo Arenas, homossexual duramente perseguido ao longo dos anos 70, magnificamente interpretado por Javier Bardem.
E hoje, como andam as coisas em Cuba? Definitivamente, Cuba não é mais a mesma, sobretudo por causa da atuação política e intelectual de Mariela Castro, filha de Raúl Castro e a mais importante difusora das políticas de gênero na ilha. Por certo, os homossexuais da alta hierarquia partidária e governamental não são assumidos, como na maior parte do mundo liberal. No entanto, contrariamente à maior parte do mundo liberal, a televisão estatal cubana aborda e enfrenta a homofobia de maneira clara e explícita, sem pudores e meias palavras, com direito a beijo na boca em horário nobre.
Num momento belo e dramático de Morango e Chocolate, quando Diego (Perugorría) explode em choro e conta a Davi (Vladimir Cruz) que vai fugir do regime, para nunca mais poder voltar, ele diz algo mais ou menos assim: "tenho mais de trinta anos, não aguento mais adiar minha vida. Quando chegará o dia em que os homossexuais serão tratados com dignidade neste país? Nunca chegará o dia!" Se este dia ainda não chegou, ele está cada vez mais próximo de chegar a Cuba, certamente muito mais próximo lá do que na maioria das democracias ocidentais...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

El viaje a Cuba 1




Acho que foi a primeira viagem que fiz. Ou, ao menos, a primeira em muito tempo. Claro, se aceitarmos que uma viagem propõe surpresa, pensamento, encanto e decepção, que ela te dá e não te dá o que você esperava encontrar. E, sobretudo, trata-se de uma 'viagem' no sentido de que você não passa imune a ela, não volta do mesmíssimo jeito que foi. O que, no meu caso, não significou voltar de lá flertando com os Democratas ou exibindo camisetas com a estampa do Che e um boné com as insígnias del Comandante. Porque isso também existe, e muito, em se tratando de viagens a Cuba. Não são poucos os que no Brasil se dizem de 'esquerda' e voltam de lá horrorizados com a pobreza, a débil infraestrutura, a precariedade de alguns serviços; assim como también los hay quienes por aqui se locupletam com a social-democracia nacional e seus sonhos de modernização, mas mal conseguem disfarçar o encanto com as crianças uniformizadas, bem nutridas e bem cuidadas, recém saídas da escola, brincando livremente pelas ruas de uma capital com mais de 2 milhões de habitantes.
Cuba não se deixa capturar pelos estereótipos fáceis, mas tampouco é possível se desvencilhar deles com facilidade. Antes mesmo de chegar ao país, nós, brasileiros, já somos a favor ou contra Fidel. As elites e as classes médias estudadas parecem ter certo fascínio mórbido por Cuba e, por isso, todos precisamos ter uma sólida opinião pré-formada sobre o assunto. Imagino que entre os milhares de canadenses que a cada inverno invadem as praias caribenhas da ilha isso não seja lá uma questão muito importante... Seja como for, a visita a Cuba só começa quando suspendemos (ou tentamos fazê-lo) os preconceitos que nublam os contrastes que despontam em toda parte assim que conseguimos abrir o olho. Apenas então começamos a enxergar um país no qual as coisas nunca parecem ser aquilo que são e nunca são aquilo que parecem ser. Em seu caráter contraditório e dialético, Cuba talvez tenha preservado algo de certa herança marxista...

El viaje a Cuba




A experiência de uma viagem a Cuba começa antes mesmo de se obter o visto de turista. Basta comentar com amigos e conhecidos. Ninguém fica indiferente.
As praias são maravilhosas, meu primo esteve em Varadero, vi umas fotos que você não acredita. É, e o sistema de saúde é avançado, é pra todo mundo; diz que não tem criança na rua, essa miséria ali, no sinal de trânsito. Vai nessa, aquilo é um miserê danado, não foi o Brecht mesmo que falou que o socialismo, em vez de ser a divisão igualitária da riqueza, era a divisão da pobreza para todos? E ainda por cima, uma ditadura. E homofóbica! Você não viu aquele filme? Qual, Morango e Chocolate? Também, mas eu tava falando de outro, daquele que... É mesmo, tinha esquecido, aquele do poeta gay que é preso em campos de concentração, né? Esse mesmo, depois ele consegue emigrar, mas morre de Aids em Nova York. Tristeza, hein, e você vai pra lá? Mas aquele filme é ruinzinho, hein? Você não achou? Só escapa o Javier Bardem! O filme não sei, mas dizem que o poeta era bom. Nunca li. Como se chamava mesmo? Ah, não lembro, acho que era Reynaldo qualquer coisa... Arenas, não era isso? Pois é, barra pesada, será que ainda é assim por lá? Claro que é, você não viu aquele dissidente, o cara morreu em greve de fome... É, mas em Guantánamo os americanos também... Não, imagina, isso foi no passado, mudou tudo, os caras em Cuba tão a ponto de aprovar casamento gay! Vai nessa... Ah, mas tem a música, aquilo é sensacional! Em Cuba você deve escutar música da melhor qualidade em todo lugar, quem não gosta do Buena Vista? E tem a Omara, parece que ela é a única que tá viva. É, ela veio no ano passado aqui em Curitiba, cantou com a Bethânia, eu não vi, disseram que foi lindo. E os drinks, então, deve ser o paraíso! "Mi mojito en la Bodeguita, mi daiquiri en el Floridita", não era assim a frase do Hemingway?
Sim, Cuba é tudo isso; não, Cuba não é nada disso; Cuba é muito mais, às vezes também é muito menos. Jano bifronte, para cada maravilha um senão, e vice-versa. Nisso que agora escrevo e em tudo mais que venha a escrever sobre Cuba devo muitíssimo à Maria Rita, que me ensinou a fazer 'esta' viagem (e muitas outras).

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Correspondências I


Uma recente viagem a Cuba despertou meu interesse pela literatura cubana. Estou lendo agora o romance que projetou Alejo Carpentier à cena literária mundial, Os passos perdidos, traduzido por Marcelo Tápia e publicado em 2008 pela Martins Fontes. O livro conta a história de um musicólogo desencantado que recebe a missão de encontrar certos instrumentos musicais indígenas para trazê-los ao acervo do museu de uma universidade norte-americana. Quanto mais se embrenha na amazônia venezuelana, deixando para trás os vestígios da civilização moderna, mais sente vibrar em seu corpo e em seu espírito o apelo de uma natureza que lhe impõe seus mistérios e exuberância. Logo após o instante da mágica conversão às forças da natureza primordial, em plena selva, o narrador toma em suas mãos a Odisséia que um mineiro grego lhe oferecera de presente, poucos dias antes de desaparecer no turbilhão verde em busca de ouro e diamantes. O narrador abre o livro ao acaso, "topando ... com um parágrafo que me faz sorrir: aquele em que se fala dos homens que Ulisses despacha ao país dos lotófagos, e que, ao provar a fruta que dava ali, esquecem-se de retornar à pátria. 'Tive de trazê-los à força, soluçantes' - conta o herói - 'e acorrentá-los sob os bancos, no fundo de suas naus'. Sempre me incomodara, no maravilhoso relato, a crueldade de quem arranca seus companheiros da felicidade encontrada, sem oferecer-lhes outra recompensa além de servi-lo. Nesse mito vejo como que um reflexo da irritação que causam sempre à sociedade os atos de quem encontra, no amor, no desfrute de um privilégio físico, num dom inesperado, o modo de subtrair-se às fealdades, proibições e vigilâncias padecidas pelos demais." (pp. 214-215)
Não importa se Carpentier leu ou não a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer. Acho pouco provável que a tenha lido, embora seu romance seja de 1953. Mas essa não é a questão. Seja como for, o romance parece estabelecer inúmeras correspondências com a temática abordada no ensaio filosófico dos frankfurtianos. O narrador é musicólogo, como Adorno; como Adorno, Horkheimer e tantos outros pensadores de meados do século passado, também o narrador de Os passos perdidos conheceu de perto "a Mansão do Calafrio, onde tudo era testemunho de torturas, extermínios em massa, cremações, entre muralhas salpicadas de sangue e de excrementos, montões de ossos, dentaduras humanas empilhadas num canto a pazadas, sem falar das mortes piores, obtidas a frio, por mãos com luvas de borracha, na brancura asséptica, nítida, das câmaras de operações. A dois passos daqui, uma humanidade sensível e cultivada - sem fazer caso da fumaça abjeta de certas chaminés, pelas quais haviam brotado, um pouco antes, preces uivadas em iídiche - seguia colecionando selos, estudando as glórias da raça, tocando pequenas músicas noturnas de Mozart, lendo a pequena sereia de Andersen aos meninos. Isto também era novo, sinistramente moderno, pavorosamente inédito." (pp. 102-103) Além do recurso à Odisséia em um momento estratégico de sua narrativa, também ele fundamental no ensaio dos frankfurtianos, Carpentier descreve a viagem de um homem moderno, esclarecido, rumo à contracorrente do tempo, isto é, rumo a um tempo presente-passado no qual homem e natureza estipularam um pacto entre si, tempo em que o homem ainda desconhece a renúncia e não se priva da plena fruição da felicidade. Será que Carpentier não estaria dando contornos mais precisos (e por isso, talvez, mais problemáticos) àquele horizonte utópico de reconciliação entre homem e natureza, apenas balbuceado por Adorno e Horkheimer?

terça-feira, 6 de abril de 2010

Sobre a exposição de Andy Warhol na Pinacoteca de São Paulo


Andy Warhol é o papa do pop. Sua obra eleva o princípio da reprodutibilidade ao apogeu e o que resulta desse procedimento é a versão mais acabada da arte desprovida de aura, para empregar a terminologia de Benjamin. A princípio, tudo se passaria como se sua arte se limitasse a reproduzir a imagem chapada de estrelas do cinema, de personalidades políticas e de mercadorias cotidianas tornadas conhecidas e cultuadas em virtude da atuação intensiva da indústria cultural. Desse ponto de vista, Warhol nada mais teria a nos oferecer senão a duplicação do vazio luminoso em que já habitamos, reiterando, desse modo, o efeito perverso denunciado por Adorno como repetição do mesmo em meio à compulsão pela novidade. No entanto, talvez suas obras magníficas não estejam desprovidas de peculiar ambiguidade crítica, pois também parecem denunciar o esvaziamento de sentido que acompanha o processo de conversão dos indivíduos em objetos de culto. Será que Warhol, em vez de promover a abolição da dimensão crítica da arte, não a suscita e estimula exatamente ao exacerbar a repetição de suas superfícies coloridas? Segue nessa direção o interessante ensaio de Paulo Pasta, publicado recentemente na FSP. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0204201022.htm

A propósito...

Não foi sem alguma hesitação que entramos na blogosfera... O espaço virtual já está mais do que ocupado e a sensação de exagero, exibicionismo, inutilidade e perda de tempo está à espreita. Seja como for, este é o mundo em que hoje vivemos e não adianta ignorá-lo. Por isso entramos e aqui estamos, sem saber por quanto tempo, desconfiados e incertos quanto ao sentido da empreitada. A única expectativa é que esse seja um espaço de multiplicação de idéias, pensamentos e ações não convencionais, 'críticos', como se dizia antigamente... Enfim, o blog Okupação é coisa de gente que foi jovem nos anos 80 e ainda não atingiu a tal maioridade. A propósito do título deste blog: na Espanha, Okupas são os ativistas que invadem espaços fechados ou abandonados e ali se instalam para promover discussões, novas formas de vida e de atuação política à margem das instituições tradicionais.