Os desajustados (The Misfits), dirigido por John Huston e com roteiro assinado por Arthur Miller, então marido de Marylin Monroe, é o que se poderia chamar de um Western pelo avesso, pois contraria todos os padrões daquele gênero cinematográfico ao por em cena, justamente, questões de gênero. Numa palavra, o filme desmonta, de maneira impiedosa, o imaginário masculino tradicional veiculado pela figura do cowboy (Clarke Gable, no papel de Gay Langland). Exibido em 1961, o filme condensa questões sociais que em muito ultrapassam o universo simbólico convencional dos westerns, ao expor dilemas como a dissolução da casa e da família, com a consequente solidão e o desarraigamento de homens e mulheres; o processo de urbanização e a destruição dos parâmetros tradicionais da vida no campo, agora preterida pelo predomínio do pequeno trabalho assalariado urbano; a corrupção da relação dos últimos cowboys com a natureza, encenada no violento aprisionamento dos parcos cavalos ainda livres e selvagens, em meio a uma paisagem lunar, devastada e desértica.
O fio condutor que amarra e perpassa esses temas é o questionamento das relações entre homem-mulher, enfocadas numa perspectiva que concede primazia ao feminino. Este é justamente o aspecto central na inversão dos padrões estéticos e de valor dos westerns tradicionais, isto é, a precedência concedida ao personagem feminino interpretado por Marylin Monroe (Roslyn Taber). Se os westerns são filmes nos quais se encena a virilidade masculina, Os desajustados submete essa lógica simbólica a seu esgotamento, e o faz por meio da delicadeza feminina.
Roslyn é o astro luminoso em torno do qual vagam os três personagens masculinos (interpretados por Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach), todos eles magnetizados pelos atrativos contraditórios que ela encarna à perfeição, naquela que foi sua última e talvez mais bela performance no cinema. Em cada fala e em cada aparição, Roslyn é a beleza e o desespero; o vigor vital e erótico que a tudo renova e unifica, mas também a fragilidade de quem está à beira do precipício; ela é a ânsia de vida, de amor e de gentileza, aliada à intransigência para com toda forma de sofrimento e violência.
Os personagens masculinos, por sua vez, encontram-se emasculados, cada qual à sua maneira: Gay (Clark Gable) é um velho cowboy ainda charmoso, mas fracassado na vida profissional e desiludido em relação à família e aos filhos que perdeu pelo mundo; Guido (Wallach) é um farrapo humano, tão esburacado quanto o velho casaco que ele ainda guarda de sua participação na guerra, um homem marcado pela morte da jovem mulher grávida, falecida por sua própria irresponsabilidade e descuido; Perce (Clift) é um jovem cowboy miserável, deserdado pelo padrasto, esquecido pela mãe e cujos recorrentes acidentes em rodeios mambembes parecem ter afetado seu juízo.
A improvável união desses quatro indivíduos desgarrados é proporcionada pela viagem de Roslyn de Chicago a Reno, no Estado de Nevada, a fim de se divorciar. Vestida de negro, Roslyn esforça-se por decorar a fala cliché que lhe ensinou Isabelle (Thelma Ritter), a dona da pensão em que se hospedou. Para garantir sua liberdade, ela deve dizer ao juiz que o marido era violento e desrespeitava seus direitos sistematicamente. Nada disso é verdade; Roslyn quer o divórcio porque lamenta a ausência constante do marido, mesmo quando ele se encontrava presente. Este detalhe é crucial na construção de seu personagem, pois marca a natureza de seu vínculo com a vida e com o amor: Roslyn não quer apenas um compromisso, quer cuidado, delicadeza e intensidade, quer um amor de verdade e não o arremedo de uma instituição, simbolizado pelo automóvel batido que o ex-marido lhe dá como presente.
O encontro dos personagens se dá por meio do contato entre Roslyn e o cão perdigueiro de Gay, que ela afaga e agrada num restaurante do centro da cidade, ponto de encontro dos desocupados. Esse é outro detalhe crucial, pois ela, a moça da cidade, encarna ao longo do filme o cuidado pelos animais indefesos, maltratados pelos cowboys.
Estabelecido o vínculo entre os personagens, Huston nos oferece sequências memoráveis, de incrível beleza melancólica e violência desesperada, poucas vezes vistas no cinema. Menciono ao menos duas dessas sequências, pois sempre me pareceram as mais emblemáticas.
A primeira sequência se dá na casa de campo abandonada por Guido. Gay, Guido, Roslyn e Isabelle tomam whiskey e dançam ao som do rádio do carro. Ao final da sequência, Roslyn, bêbada, dança pelo jardim, cambaleante entre a dor e o prazer, e se abraça a uma árvore em busca de amparo. Nada se diz, tudo está dito pela imagem: tristeza e alegria se embaralham em seu rosto que busca o conforto da natureza. Não casualmente, as próximas sequências mostram Gay e Roslyn passando uma temporada na mesma casa, que eles começam a reformar e cuidar, tornando-a mais próxima de um lar do qual se possa entrar e sair com liberdade. Quem não se emocionar com essas imagens jamais compreenderá o fascínio que emana de Roslyn, isto é, a força transformadora da delicadeza.
A outra sequência memorável é, obviamente, a da captura dos cavalos selvagens, impressionante pelo embate violento e visceral entre os pobres cowboys e os pobres mustangs que reagem, desesperados, à perda da liberdade. Ali se encena também o ritual de sacrifício e morte simbólica do vaqueiro, isto é, do estereótipo de exportação do macho norte-americano.
A sequência é longa e perturbadora, pois Huston a mantém em suspenso até a última cena do filme. Confrontada com a violência da captura de animais selvagens que serão entregues, por uma bagatela, a comerciantes que os matarão para fazer comida de cachorro, Roslyn se enfrenta com Gay em atos e palavras. Após ser derrubada com violência por Gay, sentindo-se impotente e aviltada, Roslyn corre para longe e grita, desesperada, para os três homens, declarando-os mortos vivos, pessoas de quem se deveria ter pena. A explosão de ira da pequena mulher solitária, gritando em meio ao deserto poeirento, é aterradora e comovente.
Gay é suscetível aos apelos de Roslyn, mas também se sente vinculado às suas próprias convicções e valores tradicionais, ao seu passado como cowboy e homem livre, sem patrão e sem salário, bem como, evidentemente, sente-se atado à sua imagem de homem viril e dominador. A cena em que ele é arrastado pelo cavalo selvagem e luta com ele de maneira patética, medindo forças com o animal até derrotá-lo, dá bem a dimensão do embate de valores contraditórios que nele se agitam. Por um lado, Gay reconhece a iniquidade de seu comportamento; Perce, o vaqueiro jovem, além de Roslyn, também atua no sentido desse reconhecimento, pois compreende o absurdo da situação. Por outro lado, Gay sabe que agindo daquela maneira mantém intacta sua imagem como macho perante os demais. A tensão se explicita ao máximo com o comportamento de Guido, que, pouco antes, fora desmascarado por Roslyn, que nele denuncia o cinismo e a indiferença, por debaixo de belas palavras que apenas simulam sofrimento e culpa. Quando Guido felicita Gay e se diz orgulhoso pela vitória obtida à força contra o animal, Gay finalmente rompe a corda que atava o cavalo ao caminhão e o liberta. Nesse momento, ele rompe também a corda que o mantinha atado ao imaginário do vaqueiro solitário, viril e irresponsável. Apenas então ele está livre para amar e entregar-se a Roslyn. Não é, pois, sem experimentar boa dose de angústia, conflito e dor, que Gay finalmente cede ao amor e abandona sua vida de cowboy desventurado.
O filme termina com a única nota de esperança que ali comparece: Roslyn e Gay agora estão prontos para ter um filho e constituir um lar, uma casa. Restaria saber se isso, de fato, constituiria um final feliz. Muito dificilmente; ou, apenas, sob a condição de que também a família pudesse ser virada pelo avesso.
Mestre André, belo texto, bela análise! Agora, já que foi prometido, estamos mais do que nunca no aguardo do livro sobre o cinema. Grande abraço, André Tezza.
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