Escrevo com a memória ainda fresca, repleta das cenas, depoimentos, cantos e gritos coletivos, banhados pela morna e bela luz invernal que realçou corpos-mensagem, cartazes e bandeiras durante a manhã do dia 14/07/2012. Em certo sentido, nada haveria que acrescentar. As fotografias da Marcha das Vadias de Curitiba, imediatamente divulgadas pela mídia e por diversas redes sociais, falam por si mesmas; os corpos nus e suas inscrições são auto-explicativos: "Não é sobre sexo, é sobre violência", dizia um corpo. "Meu corpo, minhas regras", dizia outro. "Entre homem e mulher, só o coração deve bater." "Ei, machista, gozar é uma delícia!". "Estão nuas e cobertas de razão".
Se escrevo ainda alguma coisa é apenas para tentar traduzir o que se encontra subentendido nessas mensagens políticas da epiderme.
A Marcha das Vadias mostra-se singular em relação a outros movimentos de mulheres e minorias. Por certo, há semelhança no plano dos discursos e das reivindicações. Mas há diferenças interessantes. O movimento começou em 2011 com jovens mulheres feministas canadenses, que resolveram enfrentar as estratégias de responsabilização das vítimas da violência masculina: "se são violentadas é porque se vestem como vadias (slut)...", disse um policial. Donde o Slutwalk, a marcha das vadias. O movimento se internacionalizou rapidamente e é sempre organizado por coletivos ou grupos de feministas. No Brasil, um aspecto interessante é que os participantes da Marcha das Vadias não se definem pelo recurso a uma identidade determinada. Vadias somos todxs! Cabe todo mundo: homens e mulheres, jovens, adultxs e idosxs, homossexuais, lésbicas, heterosexuais, transsexuais, travestis e quem mais assumir o feminismo e a atitude queer, reunindo crítica, política, ironia, coragem, criatividade e despudor. O caráter artesanal dos cartazes, a pintura tosca nos corpos, a ironia derrisória, tudo isso compõe um clima anárquico, divertido e anti-normativo, que caracteriza e distingue a Marcha no Brasil.
Mas talvez a principal diferença em relação a outros movimentos de minorias esteja em que a Marcha das Vadias, no Brasil e em outros lugares, pratica uma política corporal, isto é, uma política do corpo ou uma política como corpo-a-corpo no espaço público, disseminando imagens poderosas pelas redes virtuais e pela mídia eletrônica. Seu lema parece ser: se o corpo é o lugar privilegiado de inscrição de múltiplas formas de sujeição e violência, seja então o corpo uma arma de combate político cotidiano: "Machismo, racismo e homofobia: a nossa luta é luta todo dia".
A marcha simboliza a luta da vida nua que promove um curtocircuito nos sistemas biopolíticos hegemônicos de dominação heteronormativa, revertendo a fragilidade do corpo nu em força político-simbólica. Política como desconstrução da heteronormatividade. Dito assim parece complicado, acadêmico demais, mas na verdade a coisa é bem simples e tem tudo a ver com nosso cotidiano: o corpo, a sexualidade, o prazer, o gênero, a reprodução e sua interrupção, os amores e as amizades, tudo isso é regrado por normas que ditam o que pode e o que não pode; quem pode e quem não pode; aonde pode e aonde não pode; quando pode e quando não pode. E todas essas normas são garantidas e reproduzidas por homens e por mulheres que pensam-e-se-comportam-como-homens. Aos 'a-normais' a violência, o desprezo, o escárnio, a incompreensão, a morte.
Contra a hegemonia do poder normativo masculino, patriarcal, a Marcha das Vadias promove a manifestação dos corpos desviantes, desviados, os corpos que falam, gritam e exigem, os corpos que se exibem, se divertem, se beijam e se abraçam publicamente, escandalosamente. Política da vida escandalosa ou vida como escândalo político? Tanto faz. O que importa é que cada manifestante imponha a si mesmo uma transformação no modo de despir ou vestir seu corpo e suas ideias, alterando seu modo de existir e conviver com os demais.
Contra a violência que assassina, mutila e traumatiza, a coragem dos corpos que não se escondem, mas vibram e faíscam ao aparecer em praça pública.
Contra o silêncio que cala e oprime, a crueza barulhenta dos corpos insubmissos que denunciam: 13 mulheres são agredidas por dia em Curitiba, para ficarmos com as estatísticas oficiais do quarto estado brasileiro onde mais se cometem violências contra as mulheres.
Contra os corpos publicitários e domesticados, os corpos desordeiros que não respeitam qualquer padrão de beleza previamente estabelecido.
Contra o bom comportamento do cidadão exemplar, os corpos que provocam, que chamam a atenção, pois não esperávamos vê-los ali, no meio da rua, dando novo ar e novas cores à cidade, arco-iris em dia de céu aberto.
Contra a força-bruta dos espancadores e estupradores, a força leve e móvel dos corpos que protestam enquanto se alegram e vice-versa.
Contra a intolerância masculina, laica ou religiosa, familiar ou anônima, a beleza dos corpos nus que param o trânsito e incomodam os conservadores de plantão. Enquanto os irritados buzinam freneticamente, as vadias exibem seus cartazes e sorriem na manhã de sábado: "Lugar de mulher é onde ela quiser".
Contra a pasmaceira da opinião pública, corpos de homens e mulheres que desconcertam os bem-pensantes, os mal-pensantes e os 'bons' militantes das políticas de minorias, que em geral não dão as caras por ali. Devem pensar: "não fomos nós que concebemos e organizamos o movimento, então ele deve ser politicamente incorreto. Pra não dizer que ele é politicamente arriscado, pode chocar a opinião pública, ai ai ai...."
Os corpos nus das vadias se organizam autonomamente, conduzem o movimento das páginas das redes sociais virtuais para as ruas da cidade e são então seguidos de perto por PSOL e PSTU, a despeito de muitos participantes pensarem que nenhum partido os representa.
A Marcha das Vadias exige a implementação de ações políticas relativamente simples, mas que parecem inaceitáveis para a pequena política partidária machista: direito à igualdade entre homens e mulheres em todas as dimensões da vida; criminalização da discriminação e de todas as formas de violência de gênero e contra a orientação sexual; liberdade para abortar no sistema de saúde público; políticas de minorias que garantam a todxs a liberdade de ir e vir vestidx como quiserem, com quem quiserem, sem serem molestadxs ou agredidxs. Respeito à diferença, sempre. Será tão difícil de entender? Será tão difícil de implementar tais demandas? Parece que sim. Por isso a luta é contínua, noite e dia, faça chuva ou sol, frio ou calor.
A Marcha das Vadias dá voz àquelxs que a política institucional simplesmente ignora, deixando-xs expostxs à repulsa e à agressão.
Vadias e vadios resignificam a linguagem e os preconceitos ordinários. "Meu cu é meu!" Tautologia que ainda se faz necessário reiterar.
Vadia, vadiar, vadiagem, viadagem...viagem de corpos que carnavalizam e re-politizam a rua, o sexo, a moda, o amor, os bons costumes.
Para alguns, mera desordem passageira; para outros, perda de tempo de quem tem tempo a perder, "bando de filhinhos e filhinhas de papai alvoroçando o espaço público de maneira irresponsável..." Há também os que sentem tremer os pilares de seu mundo medíocre e reagem com mais violência. Pior para todos eles. Pois é por aí mesmo que segue e seguirá a micropolítica neste século 21, politizando corpos e espaços que antes permaneciam silenciosos ou apolíticos.
A Marcha das Vadias manifesta sua força pela disseminação de imagens e linguagens que falam mais alto e mais claro que mil palavras e discursos bem-comportados. O movimento encarna a força simbólica da perturbação da ordem, desorganizando ideias e produzindo efeitos duradouros de contaminação, por meio da perfuração da cútis patriarcal. Piercing político.
A Marcha das Vadias luta por um mundo mais alegre e igualitário, um mundo menos violento. E você, de que lado você está?