terça-feira, 24 de julho de 2012

Just Kids, de Patti Smith



Conheci a música de Patti Smith em meados dos anos 80, na universidade. Ela continuava sendo a musa do punk-rock em plena era pós-punk. Claro que não conhecia nada de sua história nem tampouco a música que ela já fizera desde meados dos anos 70. As informações não circulavam facilmente então, não havia you tube, mas o recado estava dado: Patti Smith era um sinal de que a distância entre o final dos anos 60 e meados dos anos 80 não podia ser medida cronologicamente. Os canais de comunicação ainda estavam abertos e era possível ouvir Velvet Underground, The Doors, Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé e Jimmy Hendrix como se a música deles fosse contemporânea de The Cure, Bauhaus, Joy Division, David Bowie, etc. Não falo dos estilos musicais, mas daquilo que sempre constituiu a história do rock: rebeldia. Nessa perspectiva, Patti Smith era um elo de ligação sobrevoando o tempo dos relógios.



Conheci a obra fotográfica de Robert Mapplethorpe em meados dos anos 90, quando morava e estudava em Nova York. Já eram outros tempos: a AIDS e o neoliberalismo haviam cortado os elos de comunicação entre fim dos 60 e o fim dos anos 80. O próprio Mapplethorpe simbolizava tragicamente esse fim, assassinado prematuramente em 89, mais uma vítima da epidemia do HIV.


De todo modo, sua obra falava justamente desse mundo que desaparecera, o mundo da experimentação com o corpo, com a sexualidade, com o prazer e a dor de existir na contramão da história. Dentre as fotos que vi, me impressionaram aquelas sobre as experiências sado-masoquistas de Robert e de seus companheiros pela noite escura dos clubes S/M de NY, transformadas em arte da mais clássica sobriedade e equilíbrio formal.



Graças a Just Kids, o premiado livro de memórias escrito em 2010 por Patti Smith, descobri que ela e Mapplethorpe foram muito mais que namorados, amantes e amigos, pois fizeram de sua relação uma fonte contínua de inspiração para suas criações artísticas. Fidelidade à arte, eis o que os uniu em 1967 e os manteve unidos mesmo depois que Mapplethorpe mergulhou de cabeça no universo homossexual.
Descobri o livro por acaso. Voltava de Paris e a perspectiva de passar mais de 10 horas em claro me levou à ótima livraria gay do Marrais, Les mots à la bouche. A fotografia da capa chamou minha atenção imediatamente. Patti e Robert estão no parquinho de diversões de Conney Island. Antes que se instaurasse a ditadura da moda, era preciso criar-se e recriar-se com o que se podia garimpar aqui ou ali. Patti usa roupas claras e uma faixa no cabelo liso e negro, calças jeans arregaçadas de quem molhou os pés no mar gelado; é mais uma dentre tantas outras garotas hippies de 1970. Robert é meticuloso: chapéu negro, casaco negro, calça jeans escura e camiseta negra treliçada, deixando ver o branco do corpo magro realçado pelo lenço branco ao pescoço. Juntos, são a imagem de uma juventude disposta a revolucionar a cultura, mesmo que ainda não saibam como. Têm pouco mais de 20 anos e são dois desconhecidos tentando a vida em NY, enfrentando estoicamente a fome, a pobreza e a incerteza. Sabem apenas que querem ser artistas. 
Patti encara a câmera com seriedade, como quem desafia corajosamente o presente e o futuro; Robert, com o sorriso discreto de quem sabe que um dia triunfará. A história dos dois está contida nessa fotografia tirada por um senhor em seu velho lambe-lambe. Patti é um reservatório de energias em ebulição, mas ainda desconhece o uso possível de toda a força rebelde que vai se acumulando dia a dia em seu corpo magro. Robert já encarna a liberdade soberana do rebelde que combina ousadia desabusada e sensibilidade clássica: impossível não se deixar cativar por ele.

O livro vale a pena por muitos motivos. É uma bela descrição da louca e decadente NY nos anos 60-70, época da Factory de Andy Warhol e do celeiro de criação que foi o Chelsea Hotel; é o diário cativante de dois jovens tentando definir artisticamente seus destinos, quase às cegas: aos 20 e poucos anos, Robert nunca tirou uma fotografia e Patti nunca cantou ou compôs música! O livro é também um retrato do amor para além da amizade e do romance juvenil, uma aposta na fidelidade acima de todas as circunstâncias, incluindo-se a morte.
É, enfim, um relato nostálgico e belamente escrito por alguém cuja voz madura relembra todas as incertezas e dificuldades por que passaram os dois jovens de origem católica, loucos por arte e por tornarem-se artistas, mas desprovidos de qualquer apadrinhamento ou apoio econômico em seus começos.


Será que a publicação desse livro sinaliza um reatar de laços entre a rebeldia criativa dos 60-70 e o século que se inicia? O mais provável é que não. O tempo não volta para trás e vivemos hoje noutro mundo.
Mas agora que o neoliberalismo entrou em crise e que o fantasma da AIDS parece menos assustador, já é novamente possível reavaliar o potencial criativo e disruptivo dos anos 60-70. Talvez assim também seja possível começar a avaliar as novas ondas estético-políticas que começam a se formar no horizonte do presente. Será que já não somos testemunhas de novas correspondências temporais entre presente e passado, para além do tempo dos calendários?


Finalmente: o livro foi traduzido para o português pela Cia das Letras. Não sei quanto vale a tradução, mas o título escolhido me parece desastroso: Só garotos não vale como tradução de Just kids; melhor teria sido deixar o título no original, como fizeram os franceses...

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