Compreender o recente ciclo de manifestações políticas iniciadas em junho de 2013 é tarefa por demais complexa e, por certo, ainda precisaremos
de muito mais tempo e de pesquisas variadas para poder entendê-las melhor. Por hora, apresento apenas o esboço de um balanço reflexivo, sem qualquer pretensão exaustiva ou conclusiva. De fato, tento apenas apreender e sintetizar algo que por enquanto ainda me parece inabarcável, isto é, o significado político daquelas manifestações; tento, enfim, dar forma àquilo que elas exigiram de meu pensamento até aqui.
Ao menos o enredo geral é bem conhecido: as vitórias conquistadas pelo Movimento Passe Livre em
São Paulo e Rio de Janeiro detonaram imediatamente, em todo o país, um intenso desejo de manifestação política,
de ocupação coletiva de espaços urbanos antes destinados à circulação viária, um forte desejo de expressar a própria voz, uma clara
vontade de aparecer em público e reivindicar algo, fosse o que fosse, de maneira performática,
teatral e mesmo estridente.
"Não é apenas por
0.20!", gritaram milhares de manifestantes. Claro que não: abaixar a tarifa é apenas o primeiro passo no âmbito de transformações muito mais amplas e profundas, que devem transformar nossa concepção do transporte urbano, redefinir o direito de ir e vir e o significado do viver nas
cidades, repensar nosso modelo de desenvolvimento econômico e por em ação medidas que diminuam a
distância entre ricos e pobres.
Sabemos também qual foi a reação política e policial que se seguiu às primeiras manifestações, bem como conhecemos suas consequências mais imediatas. Foi no contexto do aumento da violência policial contra os manifestantes que as
próprias manifestações começaram a ganhar contornos cada vez mais violentos, sobretudo com a entrada em cena, ao menos do ponto de vista da grande mídia, dos chamados Black Blocks, taxados indiscriminadamente como vândalos, baderneiros, criminosos e até mesmo como terroristas por um vetusto senador da República, pasmem vocês...
Desde que as manifestações de Junho começaram o cenário político foi se tornando confuso e nebuloso, abarcando posições contrapostas, porém contíguas e por vezes quase assemelhadas entre si. Muitos incentivavam a participação nas manifestações, mas os chamados vinham desde partidos e movimentos sociais situados à esquerda do PT, passavam por associações e agremiações politicamente anódinas, até chegar a setores desta mesma sociedade civil claramente colocados à direita do espectro ideológico nacional, dentre os quais a Revista VEJA e as associações contra a Corrupção, estes claramente interessados em se aproveitar do momento político para desgastar o governo federal e tentar liquidar a hegemonia petista conquistada desde 2002.
Ainda com relação à grande mídia, sobretudo nos jornais televisionados pertencentes à rede Globo, mas também nos grandes jornais impressos e on-line, como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, observava-se uma oscilação entre a criminalização indiscriminada dos manifestantes e o exercício praticamente impossível de discernir entre bons manifestantes e os chamados vândalos, epíteto repetido ad nauseam e que bem ilustra o quanto certas questões políticas continuam sendo tratadas como questões policiais. O mesmo cenário confuso e polarizado também se reproduzia entre os intelectuais: dentre aqueles próximos ou estreitamente ligados ao PT vicejava o forte temor de que as manifestações derrubariam a popularidade da Presidente Dilma, algo que efetivamente aconteceu, embora por curto período de tempo. Também houve aqueles que apoiaram incondicionalmente tais manifestações,
concebendo-as como clara expressão de um repúdio indistinto a todas as instituições
representativas, brandindo palavras-de-ordem como: “contra tudo que está aí!”, “contra os partidos!”, “sem
partidos!”.
Entre uns e outros houve também aqueles que, como eu, colocaram-se no meio do fogo cruzado e, desviando-se das balas perdidas, a muito custo tentaram pensar o que estava acontecendo sem se comprometer imediata e integralmente, seja com as concepções petistas, seja com as concepções anti-petistas, fossem elas vindas da direita ou da esquerda. Posição difícil, talvez impossível, facilmente rotulável como ambígua ou indecisa, mas que eu gostaria de caracterizar como uma posição 'crítica', se recordarmos o sentido que Foucault atribuiu à crítica, ou seja, a tarefa de tornar difíceis os gestos fáceis demais...
Assim, ao reconstruir este cenário político conturbado, tento propor reflexões que escapem à polarização simplista. Com relação ao fenômeno da
violência que começou a brotar do interior das manifestações, por exemplo, estou entre aqueles que nem a glorificam, nem tampouco com ela se escandalizam. Quem quer que acompanhe manifestações políticas no mundo todo sabe como é raro que a violência não faça aí sua aparição. Pensemos, por exemplo, nas rebeliões dos
subúrbios de Paris, onde mais de 300 carros são sumariamente incendiados em
momentos de revolta juvenil. Estes surtos de violência se devem, tanto no Brasil como no exterior, muitas
vezes à brutal repressão policial, não apenas aquela que se
volta contra os próprios manifestantes, mas também e sobretudo aquela violência policial
que 'vandaliza' os pobres quotidianamente.
Seja como for, uma
coisa me parece certa: se a violência deu cor mais forte e nítida a movimentos
políticos predominantemente pacíficos, tornando suas demandas simbolicamente
mais evidentes, também me parece que as vitórias obtidas pelo MPL não se deveram
à violência, mas ao poder gerado por seus atos e palavras.
Com
relação à chamada crise de representatividade, certamente um dos motivos
do ciclo das novas manifestações nacionais, embora de modo algum seu único ou preponderante fator, penso que é fundamental para o
fortalecimento da nossa democracia que haja movimentos políticos não vinculados a
partidos, como é o caso do MPL e de tantos outros movimentos sociais mais ou menos
organizados, mais ou menos institucionalizados, mais ou menos independentes da estrutura estatal. É essencial pensar e exercitar novas formas de organização
política e institucional, para além do monopólio dos partidos políticos, das instâncias representativas formais e mesmo dos movimentos sociais e demais associações da sociedade civil já bem consolidados. Por outro lado, contudo, recusar apressadamente a
"forma-partido" me parece ingênuo ou oportunista, e penso que atualmente isto só interessaria mesmo à direita mais conservadora, que
muito teria a lucrar com os resultados imediatos desta suposta supressão da democracia representativa e institucionalizada em eleições.
De meu ponto de vista, portanto, tratava-se de aprender a conduzir o pensamento pela corda-bamba, sem recusar genericamente "tudo o que está aí", mas sem tampouco fechar os
olhos para o impressionante potencial político daquilo que passará para os
livros de história como as “Jornadas de Junho de 2013". É
fundamental pensar e exercer uma política de esquerda para além dos partidos de esquerda e
dos limites atuais de nossa representação política, considerando atentamente o
poder imprevisível das manifestações plurais das ruas naquilo que elas têm de específico: são manifestações sem líderes, auto-organizadas e com diversas pautas, nem sempre
unificadas, mas sempre muito criativas, irônicas e afetivas, pois capazes de provocar velhas formas de vida e instigar novas experiências políticas, sociais e estéticas nas cidades. Desejo de urbis, desejo de polis, desejo de apropriação de espaços comuns, eis como eu definiria (até agora) o sentido das novas manifestações políticas que irromperam na cena política nacional desde junho.
Ninguém sabe qual será a história deste ciclo de manifestações políticas
urbanas que ainda permanecem abertas; ninguém sabe como tais manifestações evoluirão ou quando se encerrarão, pois a fagulha certamente permanece
acesa e creio que não se apagará antes do final da Copa de 2014, que desde já se anuncia como momento-crítico, pois novas manifestações acontecerão num clima ainda mais fortemente militarizado e controlado. É como vaticinava a publicidade, com sua incrível capacidade para apreender signos dispersos: "Imagine na Copa!"
De todo
modo, é urgente começar a pensar sem
recorrer exclusivamente a categorias teóricas que estão sendo postas em questão
pelas próprias manifestações. De nada contribui esbravejar e brandir velhas
noções como: “as mídias sociais são irrelevantes para as novas manifestações!”;
“as manifestações não podem dar em nada, pois não têm líderes!”; “se não
estamos numa crise revolucionária, então a violência dos manifestantes só pode
ser fascista!”; “os manifestantes são um bando de jovens romântico-niilistas!” "A culpa é da classe média reacionária, são os malditos coxinhas", etc. etc. A seguirmos nessa toada, o mais provável é nos tornarmos completamente
irrelevantes enquanto intelectuais comprometidos com a transformação social e
política do Brasil. Algo muito grave, pois o sentido político destes novos
acontecimentos ainda será disputado palmo a palmo pelos setores mais
conservadores do país.
Em minha opinião, até o momento o saldo positivo mais concreto deste novo ciclo de
manifestações é o de que ativistas e militantes mais ou menos organizados, secundados por uma maré humana desorganizada e quase sem qualquer participação política
prévia, puseram na ordem do dia, e de maneira irrevogável, três pautas políticas
cruciais: a pauta da democratização do transporte urbano; a pauta da
democratização e da desmilitarização da polícia militar; bem como a pauta da democratização de nossa mídia altamente monopolizada, desregulamentada e reacionária.
Há quem considere tudo isso como demandas exageradas ou desprovidas de foco político viável, enxergando nas novas manifestações políticas apenas o dano que podem causar a nosso frágil processo democrático. Para outros tantos, tudo o que aconteceu (e que ainda está por acontecer) ainda é e será muito pouco, muito pequeno diante da gravidade de nossa crise política. De minha parte, penso que tais acontecimentos constituem um passo decisivo,
fundamental até, para o desenho de uma outra democracia, uma democracia do porvir, mais atenta aos anseios e
necessidades sociais e de participação política popular. E se isto for verdade, algo que apenas o tempo poderá dizer, estaremos em dívida perpétua para com todos aqueles manifestantes que foram para as ruas e assim começaram a contribuir para o
longo processo de democratização da nossa democracia, o qual há de reduzir seus traços
autoritários e paradoxais.