Sem
ser um filme excepcional, "Azul é a cor mais quente" é bastante bom e
se torna ainda melhor quando assistido pela segunda vez. Ele retrata a vida de Adèle, título original da
película em francês, acompanhando-a em sua transição da adolescência à fase adulta.
É, pois, um filme de formação que conta a história de como alguém, pouco a
pouco, passo a passo, em meio a incertezas e dúvidas, começa a tornar-se ela
mesma, e é claro que o amor, o sexo e a profissão são elementos-chave neste
processo de constituição subjetiva.
Essas
coordenadas existenciais são explicitadas pela menção, algo exaustiva, no começo
do filme, ao romance de Marivaux, La vie
de Marianne. O começo do filme padece de um dos vícios do cinema francês, o 'didatismo' intelectual: citações de Ponge, de Chordelos de Laclos, Sartre expliqué aux enfants, bem como o
indefectível tema do “amor à primeira vista”. Ele é explorado nas discussões em sala
de aula e imediatamente cumprido à risca na primeira vez em que Adèle repara nos
cabelos azuis de Emma, que passa por ela na rua e a deixa desnorteada.
Coup-de-foudre, dizem os franceses. Ok,
mas precisava ser tão didático? Pouco depois vem a cena do sonho
erótico com a misteriosa garota de cabelos azuis, que, obviamente, termina em
masturbação e orgasmo violento: mais uma cena que me pareceu didática, servindo apenas para preparar o espectador para o que acontecerá a seguir. Mas quem precisa dessa preparação? Tais recursos
narrativos enfraquecem
a história e a tornam convencional. Ou melhor, quase convencional, pois o amor
à primeira vista de Adèle será por outra mulher, e isto muda muita coisa…
Para
contar essa história de amor ao longo de 3
horas (e garanto que não são 3 longas horas!), o diretor Abdelattif Kechiche tomou a arriscada decisão
estética de filmar quase tudo, mas quase tudo mesmo, em 'closes' no rosto -
sobretudo na boca, verdadeira obsessão - e no corpo de Adèle.
Essa opção não
deixa de ser arriscada, pois narrar uma história de amor entre duas mulheres abstraindo-se
quase que totalmente o mundo violento e lesbofóbico em que elas vivem pode ser bem problemático para a narrativa. De fato, o mundo ao
redor de Adèle torna-se quase mero coadjuvante para a exploração de seus
sentimentos, sua confusão emocional, seus desejos, sua curiosidade, suas
dúvidas, sua dor e sua tristeza. Como o filme é ousado o suficiente para não
abrir mão deste pressuposto estético do começo ao fim, a decisão corajosa do
diretor, assim me pareceu, provou ser bem sucedida. Não se trata, pois, de um filme
voltado para temáticas lésbica ou adolescente, e se é verdade que ele não
aborda os problemas da violência e da discriminação lesbofóbica, ele tampouco
os distarça ou encobre. Antes de tudo “Azul…” é um filme psicológico: filma-se uma
psiquê tal como ela transparece nas expressões faciais e corporais de Adèle. “Me
falta alguma coisa”, diz ela entre lágrimas a um colega de classe; e ela
realmente não tem a menor ideia do que seja isso que tanto lhe falta. Contrariamente
a suas amigas de colégio, já bem instaladas e acomodadas nas identidades
sexuais e sociais que a vida e os hábitos de sua baixa classe média lhes impuseram,
Adèle é inquieta, nunca está completamente inteira nos lugares em que está, tenta constantemente entender-se, e o mistério a seu respeito permanece
intacto em meio às suas muitas oscilações e transformações de menina a mulher. Num
filme francês isto é um grande mérito: Adèle não fala de si, é reservada e
guarda um silêncio que somente se rompe pela manifestação incontida de seus sentimentos.
Adèle não é dona de seu destino, não sabe o que vai lhe acontecer, mas em tudo
o que decide fazer ela se dá por inteiro e vai fundo na aventura. Adèle é
gulosa de vida, de amor e de sexo.
O filme se encerra sem conclusão, com Adèle
caminhando em linha reta pela calçada, vista de costas, se afastando pela
primeira vez dos olhos dos espectadores. É um bom achado narrativo para um
filme que queria filmar uma etapa na vida de um personagem.
Uma
vez tomadas aquelas decisões estéticas, as cenas de sexo entre Adèle e Emma não
poderiam escapar a elas. E é por isso que a partir dessas cenas tudo se encaixa
literalmente no filme, sobretudo seus corpos. Os corpos nus e os desejos de Adèle e Emma
são filmados sem pudor ou vergonha, sem delicadezas edificantes ou
edulcorantes, tão comuns no cinema comercial, embora uma amiga tenha observado,
argutamente, que aquelas tórridas cenas de amor comportam certa estetização
quase higiênica. De fato, as duas se lambem e se chupam explicitamente, uma
enterra a cabeça no meio das pernas da outra, mas não veremos uma gota sequer de suor nos
seus corpos ou nos seus rostos enquanto as duas se enroscam em cenas talvez jamais
vistas no cinema, ao menos fora dos festivais especializados. Do mesmo modo, tampouco
aparecem pêlos ou vaginas enquanto as duas transam; ao passo em que, talvez,
abundem as bundas, o que trai uma opção estética bem masculina e óbvia.
Essas
observações seriam mero preciosismo não fosse o fato de que desde o começo do
filme Kechiche mostra-nos Adèle chorando, as lágrimas encharcando suas
bochechas e emaranhando-lhe os cabelos, o nariz escorrendo explicitamente. Porque
nenhum fluido macula os corpos e os rostos nas cenas de sexo? Aliás, a única
vez em que o sexo de Adèle aparece todo à mostra, depilado, é na cena em que
ela, já vivendo com Emma, posa para a amada que a retrata. Sintomaticamente, na
representação artística que vemos sendo composta, seu sexo aparece tampado por uns
quantos rabiscos pretos: teria sido para preservar algum suposto (e bem duvidoso) bom-gosto
artístico? Também me pareceu dispensável prenunciar as cálidas cenas de sexo
por meio de closes e tomadas voyeurísticas que percorrem o torso e as nádegas
de esculturas, ou ainda, mostrando quadros que retratam mulheres nuas, uma vez
mais com clara predileção pelas bundas. Nada contra as bundas, mas levando-se em
consideração o que vem a seguir, aquelas cenas são de um didatismo irritante…
De
todo modo, é inegável que as próprias cenas de sexo sejam realmente de tirar o
fôlego dos espectadores e das atrizes. A primeira delas, a mais longa, exibe mais
de sete minutos de puro êxtase carnal, explicitando toda volúpia, amor,
confusão e susto com relação ao que podem dois corpos incendiados. Emma e Adèle
não economizam beijos e suculentas lambidas, os gemidos e os orgasmos vêm em
profusão e enchem a tela até o esgotamento total das forças das duas mulheres.
São
cenas para se ver no escuro, na tela branca do cinema, e quem se incomodar com
isso que busque urgentemente alguma ajuda psi. O diretor afirmou que quis
filmar aquelas cenas como se elas lembrassem esculturas vivas, e creio que nisso
foi bem sucedido, pois Emma e Adèle dão vida a Camille Claudel e a Degas. Ao
menos para mim, nada disso pareceu artificial ou estetizante. Pelo contrário,
acrescentou ainda mais um ponto à corajosa honestidade que alinhava o filme do
começo ao fim. Sim, as cenas de sexo e amor são realmente intensas; mais do que cenas eróticas, vi-as como encenação de poderosas descargas
elétricas, como acontecimentos físicos e psicológicos decisivos na vida das duas mulheres. E isso talvez incomode muita gente não acostumada a esse grau de honestidade no cinema e na
vida. Enfim, goste-se ou não de toda aquela coreografia sexual, as cenas de sexo entre Adèle e Emma se impõem,
assim como também se impõem as cenas de paquera no gramado do parque, no bar lésbico ou
os beijos apaixonados sob uma frondosa árvore, o sol explodindo atrás das duas
bocas. É mesmo o caso de perguntar quando foi que vimos beijos de amor mais
deliciosos no cinema.http://okupacao.blogspot.com.br/2014/01/ainda-sobre-o-filme-tatuagem-de-hilton.html
Quanto ao mais, trata-se de um bom filme francês. Na primeira vez em que o assisti, algumas cenas me incomodaram. Vendo-o pela segunda vez, as mesmas cenas despertaram reação contrária, pois não mais as vi como confirmação de uma suposta adesão do diretor tunisiano ao esnobismo francês. Antes, pelo contrário, as tais cenas me pareceram então um belo e sonoro tapa na cara das manias e obsessões culturais francesas. Por exemplo, ao longo do filme todo há muitas cenas de escola, e muitas vezes elas são pedantes. No entanto, é preciso reconhecer que Adèle sai transformada de sua experiência escolar e por isso mesmo quer se tornar professora maternal, quer continuar a transmitir às crianças tudo aquilo que jamais lhes chegaria por intermédio de suas famílias operárias. Na sua boca, essa frase constitui uma bela defesa do sistema escolar público francês, a ponto de fazer o padrasto burguês e esnobe de Emma reconhecer que, ao menos, a menina simples da periferia sabe exatamente aquilo que quer de sua vida. Por outro lado, também podemos nos perguntar de que terá valido tanto estudo e leitura, tanta ‘formação’ cultural, quando vemos as colegas adolescentes de Adèle promoverem cenas de agressiva lesbofobia.
Como em tantos filmes franceses, “Azul…” não descarta a ‘bavardage’, aquele famoso
papo-furado, permeado por leve toque de arrogância. Mas, vendo novamente as
cenas da festa em que Adèle alimenta e serve as amigas e amigos pedantes de
Emma, estudantes de artes plásticas e marchands,
a pretensão arrogante e vazia deles só engrandece a simplicidade de Adèle, que
sabe o que quer e só faz o que quer. Mesmo o mau-gosto dos quadros de Emma não
faz outra coisa senão expor sua intransigência ou falta de talento e, quem sabe, até mesmo seu
oportunismo social, pois é digno de nota que ela somente consiga expor seus
quadros horríveis na famosa galeria de Lille depois de trocar Adèle por uma
jovem pintora burguesa e bem inserida socialmente.
Para
além da opção estética de filmar os sentimentos e o silêncio lacônico de Adèle,
outro traço notável deste filme reside em sua cuidadosa observação do abismo
social que está predestinado a apartar as duas mulheres em algum momento. Emma é rica, seus pais são
'tolerantes' e aceitam suas namoradas, enquanto Adèle é cria da classe
trabalhadora, de família ingênua e pragmática. Esse abismo de classe produz
forte mau-estar no espectador, como nas cenas em que as jovens jantam nas casas
dos respectivos pais. Na casa de Emma, esta se esquece de avisar aos pais que Adèle,
menina pobre, não come ostras e frutos do mar, algo que ela sabia; é claro que
este tinha de ser justamente o menú exclusivo do jantar... Ou então, na casa de Adèle, é evidente
o constrangimento de Emma diante do prato de macarrão à bolonhesa, “simples,
porém no ponto”, diz ela ao pai da outra. E tudo fica ainda pior diante da pergunta materna pelo que
ela faz da vida. Ao declarar-se artista, a mãe de Adèle dispara: isso deve ser
difícil hoje em dia, pintar quadros, pois “só os mortos ganham dinheiro”; ao
que o pai emenda: “e o que faz seu namorado? É bom ter alguém que possa te sustentar
e te dar segurança...”
Por
fim, o trabalho da jovem, porém já experiente Léa Seydoux (Emma), e o da
iniciante Adèle Exarchopoulos (Adèle), é mais do que excepcional. Nada na atuação
delas é falso, nada é forçado, nada soa meramente convencional: ambas assumem e
vivem seus papéis com total honestidade, apropriando-se deles. O que mais se
poderia esperar de duas excelentes atrizes, muito bem dirigidas por Abdelattif
Kechiche?
Amei a resenha parabéns, sua perspectiva sobre o filme na minha opinião foi perfeita.
ResponderExcluirPrezada Gabriela, agradeço pelo interesse!
ExcluirAdorei a resenha também, me fez ter interesse em assistir pela terceira vez, pensando em todos os pontos citados por você(s)! Parabéns!
ResponderExcluirPrezadx
ExcluirAgradeço pelo interesse e incentivo! Abs!
Ótima resenha, ponto de vista muito interessante. Também me deu vontade de assistir pela terceira vez, parabéns.
ResponderExcluirPreciso dizer que gostei bastante de sua resenha. Acabei de assistir ao filme. Alguns pontos que você escreveu eu havia percebido. Outros tantos, só pude compreender melhor devido à singeleza da sua observação! Muito obrigada!
ResponderExcluirVerdade que o filme visto pela segunda vez dá pra perceber nuances interessantíssimas, é uma linda história de amor, onde o sexo lesbico é só um detalhe!
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