sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Balanço político de um ano singular: desde junho, algo de novo apareceu na política brasileira



Compreender o recente ciclo de manifestações políticas iniciadas em junho de 2013 é tarefa por demais complexa e, por certo, ainda precisaremos de muito mais tempo e de pesquisas variadas para poder entendê-las melhor. Por hora, apresento apenas o esboço de um balanço reflexivo, sem qualquer pretensão exaustiva ou conclusiva. De fato, tento apenas  apreender e sintetizar algo que por enquanto ainda me parece inabarcável, isto é, o significado político daquelas manifestações; tento, enfim, dar forma àquilo que elas exigiram de meu pensamento até aqui. 


Ao menos o enredo geral é bem conhecido: as vitórias conquistadas pelo Movimento Passe Livre em São Paulo e Rio de Janeiro detonaram imediatamente, em todo o país, um intenso desejo de manifestação política, de ocupação coletiva de espaços urbanos antes destinados à circulação viária, um forte desejo de expressar a própria voz, uma clara vontade de aparecer em público e reivindicar algo, fosse o que fosse, de maneira performática, teatral e mesmo estridente. 



"Não é apenas por 0.20!", gritaram milhares de manifestantes. Claro que não: abaixar a tarifa é apenas o primeiro passo no âmbito de transformações muito mais amplas e profundas, que devem transformar nossa concepção do transporte urbano, redefinir o direito de ir e vir e o significado do viver nas cidades, repensar nosso modelo de desenvolvimento econômico e por em ação medidas que diminuam a distância entre ricos e pobres. 

Sabemos também qual foi a reação política e policial que se seguiu às primeiras manifestações, bem como conhecemos suas consequências mais imediatas. Foi no contexto do aumento da violência policial contra os manifestantes que as próprias manifestações começaram a ganhar contornos cada vez mais violentos, sobretudo com a entrada em cena, ao menos do ponto de vista da grande mídia, dos chamados Black Blocks, taxados indiscriminadamente como vândalos, baderneiros, criminosos e até mesmo como terroristas por um vetusto senador da República, pasmem vocês... 

Desde que as manifestações de Junho começaram o cenário político foi se tornando confuso e nebuloso, abarcando posições contrapostas, porém contíguas e por vezes quase assemelhadas entre si. Muitos incentivavam a participação nas manifestações, mas os chamados vinham desde partidos e movimentos sociais situados à esquerda do PT, passavam por associações e agremiações politicamente anódinas, até chegar a setores desta mesma sociedade civil claramente colocados à direita do espectro ideológico nacional, dentre os quais a  Revista VEJA e as associações contra a Corrupção, estes claramente interessados em se aproveitar do momento político para desgastar o governo federal e tentar liquidar a hegemonia petista conquistada desde 2002. 


Ainda com relação à grande mídia, sobretudo nos jornais televisionados pertencentes à rede Globo, mas também nos grandes jornais impressos e on-line, como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, observava-se uma oscilação entre a criminalização indiscriminada dos manifestantes e o exercício praticamente impossível de discernir entre bons manifestantes e os chamados vândalos, epíteto repetido ad nauseam e que bem ilustra o quanto certas questões políticas continuam sendo tratadas como questões policiais. O mesmo cenário confuso e polarizado também se reproduzia entre os intelectuais: dentre aqueles próximos ou estreitamente ligados ao PT vicejava o forte temor de que as manifestações derrubariam a popularidade da Presidente Dilma, algo que efetivamente aconteceu, embora por curto período de tempo. Também houve aqueles que apoiaram incondicionalmente tais manifestações, concebendo-as como clara expressão de um repúdio indistinto a todas as instituições representativas, brandindo palavras-de-ordem como: “contra tudo que está aí!”, “contra os partidos!”, “sem partidos!”. 



Entre uns e outros houve também aqueles que, como eu, colocaram-se no meio do fogo cruzado e, desviando-se das balas perdidas, a muito custo tentaram pensar o que estava acontecendo sem se comprometer imediata e integralmente, seja com as concepções petistas, seja com as concepções anti-petistas, fossem elas vindas da direita ou da esquerda. Posição difícil, talvez impossível, facilmente rotulável como ambígua ou indecisa, mas que eu gostaria de caracterizar como uma posição 'crítica', se recordarmos o sentido que Foucault atribuiu à crítica, ou seja, a tarefa de tornar difíceis os gestos fáceis demais... 
Assim, ao reconstruir este cenário político conturbado, tento propor reflexões que escapem à polarização simplista. Com relação ao fenômeno da violência que começou a brotar do interior das manifestações, por exemplo, estou entre aqueles que nem a glorificam, nem tampouco com ela se escandalizam. Quem quer que acompanhe manifestações políticas no mundo todo sabe como é raro que a violência não faça aí sua aparição. Pensemos, por exemplo, nas rebeliões dos subúrbios de Paris, onde mais de 300 carros são sumariamente incendiados em momentos de revolta juvenil. Estes surtos de violência se devem, tanto no Brasil como no exterior, muitas vezes à brutal repressão policial, não apenas aquela que se volta contra os próprios manifestantes, mas também e sobretudo aquela violência policial que 'vandaliza' os pobres quotidianamente. 



Seja como for, uma coisa me parece certa: se a violência deu cor mais forte e nítida a movimentos políticos predominantemente pacíficos, tornando suas demandas simbolicamente mais evidentes, também me parece que as vitórias obtidas pelo MPL não se deveram à violência, mas ao poder gerado por seus atos e palavras. 

Com relação à chamada crise de representatividade, certamente um dos motivos do ciclo das novas manifestações nacionais, embora de modo algum seu único ou preponderante fator, penso que é fundamental para o fortalecimento da nossa democracia que haja movimentos políticos não vinculados a partidos, como é o caso do MPL e de tantos outros movimentos sociais mais ou menos organizados, mais ou menos institucionalizados, mais ou menos independentes da estrutura estatal. É essencial pensar e exercitar novas formas de organização política e institucional, para além do monopólio dos partidos políticos, das instâncias representativas formais e mesmo dos movimentos sociais e demais associações da sociedade civil já bem consolidados. Por outro lado, contudo, recusar apressadamente a "forma-partido" me parece ingênuo ou oportunista, e penso que atualmente isto só interessaria mesmo à direita mais conservadora, que muito teria a lucrar com os resultados imediatos desta suposta supressão da democracia representativa e institucionalizada em eleições.
  
De meu ponto de vista, portanto, tratava-se de aprender a conduzir o pensamento pela corda-bamba, sem recusar genericamente "tudo o que está aí", mas sem tampouco fechar os olhos para o impressionante potencial político daquilo que passará para os livros de história como as “Jornadas de Junho de 2013". É fundamental pensar e exercer uma política de esquerda para além dos partidos de esquerda e dos limites atuais de nossa representação política, considerando atentamente o poder imprevisível das manifestações plurais das ruas naquilo que elas têm de específico: são manifestações sem líderes, auto-organizadas e com diversas pautas, nem sempre unificadas, mas sempre muito criativas, irônicas e afetivas, pois capazes de provocar velhas formas de vida e instigar novas experiências políticas, sociais e estéticas nas cidades. Desejo de urbis, desejo de polis, desejo de apropriação de espaços comuns, eis como eu definiria (até agora) o sentido das novas manifestações políticas que irromperam na cena política nacional desde junho.



Ninguém sabe qual será a história deste ciclo de manifestações políticas urbanas que ainda permanecem abertas; ninguém sabe como tais manifestações evoluirão ou quando se encerrarão, pois a fagulha certamente permanece acesa e creio que não se apagará antes do final da Copa de 2014, que desde já se anuncia como momento-crítico, pois novas manifestações acontecerão num clima ainda mais fortemente militarizado e controlado. É como vaticinava a publicidade, com sua incrível capacidade para apreender signos dispersos: "Imagine na Copa!" 

De todo modo, é urgente começar a pensar sem recorrer exclusivamente a categorias teóricas que estão sendo postas em questão pelas próprias manifestações. De nada contribui esbravejar e brandir velhas noções como: “as mídias sociais são irrelevantes para as novas manifestações!”; “as manifestações não podem dar em nada, pois não têm líderes!”; “se não estamos numa crise revolucionária, então a violência dos manifestantes só pode ser fascista!”; “os manifestantes são um bando de jovens romântico-niilistas!” "A culpa é da classe média reacionária, são os malditos coxinhas", etc. etc. A seguirmos nessa toada, o mais provável é nos tornarmos completamente irrelevantes enquanto intelectuais comprometidos com a transformação social e política do Brasil. Algo muito grave, pois o sentido político destes novos acontecimentos ainda será disputado palmo a palmo pelos setores mais conservadores do país. 



Em minha opinião, até o momento o saldo positivo mais concreto deste novo ciclo de manifestações é o de que ativistas e militantes mais ou menos organizados, secundados por uma maré humana desorganizada e quase sem qualquer participação política prévia, puseram na ordem do dia, e de maneira irrevogável, três pautas políticas cruciais: a pauta da democratização do transporte urbano; a pauta da democratização e da desmilitarização da polícia militar; bem como a pauta da democratização de nossa mídia altamente monopolizada, desregulamentada e reacionária. 

Há quem considere tudo isso como demandas exageradas ou desprovidas de foco político viável, enxergando nas novas manifestações políticas apenas o dano que podem causar a nosso frágil processo democrático. Para outros tantos, tudo o que aconteceu (e que ainda está por acontecer) ainda é e será muito pouco, muito pequeno diante da gravidade de nossa crise política. De minha parte, penso que tais acontecimentos constituem um passo decisivo, fundamental até, para o desenho de uma outra democracia, uma democracia do porvir, mais atenta aos anseios e necessidades sociais e de participação política popular. E se isto for verdade, algo que apenas o tempo poderá dizer, estaremos em dívida perpétua para com todos aqueles manifestantes que foram para as ruas e assim começaram a contribuir para o longo processo de democratização da nossa democracia, o qual há de reduzir seus traços autoritários e paradoxais.



domingo, 15 de dezembro de 2013

Azul é a cor do desejo






Sem ser um filme excepcional, "Azul é a cor mais quente" é bastante bom e se torna ainda melhor quando assistido pela segunda vez. Ele retrata a vida de Adèle, título original da película em francês, acompanhando-a em sua transição da adolescência à fase adulta. É, pois, um filme de formação que conta a história de como alguém, pouco a pouco, passo a passo, em meio a incertezas e dúvidas, começa a tornar-se ela mesma, e é claro que o amor, o sexo e a profissão são elementos-chave neste processo de constituição subjetiva.
Essas coordenadas existenciais são explicitadas pela menção, algo exaustiva, no começo do filme, ao romance de Marivaux, La vie de Marianne. O começo do filme padece de um dos vícios do cinema francês, o 'didatismo' intelectual: citações de Ponge, de Chordelos de Laclos, Sartre expliqué aux enfants, bem como o indefectível tema do “amor à primeira vista”. Ele é explorado nas discussões em sala de aula e imediatamente cumprido à risca na primeira vez em que Adèle repara nos cabelos azuis de Emma, que passa por ela na rua e a deixa desnorteada. 


Coup-de-foudre, dizem os franceses. Ok, mas precisava ser tão didático? Pouco depois vem a  cena do sonho erótico com a misteriosa garota de cabelos azuis, que, obviamente, termina em masturbação e orgasmo violento: mais uma cena que me pareceu didática, servindo apenas para preparar o espectador para o que acontecerá a seguir. Mas quem precisa dessa preparação? Tais recursos narrativos enfraquecem a história e a tornam convencional. Ou melhor, quase convencional, pois o amor à primeira vista de Adèle será por outra mulher, e isto muda muita coisa…
Para contar essa história de amor ao longo de 3 horas (e garanto que não são 3 longas horas!), o diretor Abdelattif Kechiche tomou a arriscada decisão estética de filmar quase tudo, mas quase tudo mesmo, em 'closes' no rosto - sobretudo na boca, verdadeira obsessão - e no corpo de Adèle. 


Essa opção não deixa de ser arriscada, pois narrar uma história de amor entre duas mulheres abstraindo-se quase que totalmente o mundo violento e lesbofóbico em que elas vivem pode ser  bem problemático para a narrativa. De fato, o mundo ao redor de Adèle torna-se quase mero coadjuvante para a exploração de seus sentimentos, sua confusão emocional, seus desejos, sua curiosidade, suas dúvidas, sua dor e sua tristeza. Como o filme é ousado o suficiente para não abrir mão deste pressuposto estético do começo ao fim, a decisão corajosa do diretor, assim me pareceu, provou ser bem sucedida. Não se trata, pois, de um filme voltado para temáticas lésbica ou adolescente, e se é verdade que ele não aborda os problemas da violência e da discriminação lesbofóbica, ele tampouco os distarça ou encobre. Antes de tudo “Azul…” é um filme psicológico: filma-se uma psiquê tal como ela transparece nas expressões faciais e corporais de Adèle. “Me falta alguma coisa”, diz ela entre lágrimas a um colega de classe; e ela realmente não tem a menor ideia do que seja isso que tanto lhe falta. Contrariamente a suas amigas de colégio, já bem instaladas e acomodadas nas identidades sexuais e sociais que a vida e os hábitos de sua baixa classe média lhes impuseram, Adèle é inquieta, nunca está completamente inteira nos lugares em que está, tenta constantemente entender-se, e o mistério a seu respeito permanece intacto em meio às suas muitas oscilações e transformações de menina a mulher. Num filme francês isto é um grande mérito: Adèle não fala de si, é reservada e guarda um silêncio que somente se rompe pela manifestação incontida de seus sentimentos. 



Adèle não é dona de seu destino, não sabe o que vai lhe acontecer, mas em tudo o que decide fazer ela se dá por inteiro e vai fundo na aventura. Adèle é gulosa de vida, de amor e de sexo. 
O filme se encerra sem conclusão, com Adèle caminhando em linha reta pela calçada, vista de costas, se afastando pela primeira vez dos olhos dos espectadores. É um bom achado narrativo para um filme que queria filmar uma etapa na vida de um personagem.
Uma vez tomadas aquelas decisões estéticas, as cenas de sexo entre Adèle e Emma não poderiam escapar a elas. E é por isso que a partir dessas cenas tudo se encaixa literalmente no filme, sobretudo seus corpos. Os corpos nus e os desejos de Adèle e Emma são filmados sem pudor ou vergonha, sem delicadezas edificantes ou edulcorantes, tão comuns no cinema comercial, embora uma amiga tenha observado, argutamente, que aquelas tórridas cenas de amor comportam certa estetização quase higiênica. De fato, as duas se lambem e se chupam explicitamente, uma enterra a cabeça no meio das pernas da outra, mas não veremos uma gota sequer de suor nos seus corpos ou nos seus rostos enquanto as duas se enroscam em cenas talvez jamais vistas no cinema, ao menos fora dos festivais especializados. Do mesmo modo, tampouco aparecem pêlos ou vaginas enquanto as duas transam; ao passo em que, talvez, abundem as bundas, o que trai uma opção estética bem masculina e óbvia. 


Essas observações seriam mero preciosismo não fosse o fato de que desde o começo do filme Kechiche mostra-nos Adèle chorando, as lágrimas encharcando suas bochechas e emaranhando-lhe os cabelos, o nariz escorrendo explicitamente. Porque nenhum fluido macula os corpos e os rostos nas cenas de sexo? Aliás, a única vez em que o sexo de Adèle aparece todo à mostra, depilado, é na cena em que ela, já vivendo com Emma, posa para a amada que a retrata. Sintomaticamente, na representação artística que vemos sendo composta, seu sexo aparece tampado por uns quantos rabiscos pretos: teria sido para preservar algum suposto (e bem duvidoso) bom-gosto artístico? Também me pareceu dispensável prenunciar as cálidas cenas de sexo por meio de closes e tomadas voyeurísticas que percorrem o torso e as nádegas de esculturas, ou ainda, mostrando quadros que retratam mulheres nuas, uma vez mais com clara predileção pelas bundas. Nada contra as bundas, mas levando-se em consideração o que vem a seguir, aquelas cenas são de um didatismo irritante…
De todo modo, é inegável que as próprias cenas de sexo sejam realmente de tirar o fôlego dos espectadores e das atrizes. A primeira delas, a mais longa, exibe mais de sete minutos de puro êxtase carnal, explicitando toda volúpia, amor, confusão e susto com relação ao que podem dois corpos incendiados. Emma e Adèle não economizam beijos e suculentas lambidas, os gemidos e os orgasmos vêm em profusão e enchem a tela até o esgotamento total das forças das duas mulheres. 


São cenas para se ver no escuro, na tela branca do cinema, e quem se incomodar com isso que busque urgentemente alguma ajuda psi. O diretor afirmou que quis filmar aquelas cenas como se elas lembrassem esculturas vivas, e creio que nisso foi bem sucedido, pois Emma e Adèle dão vida a Camille Claudel e a Degas. Ao menos para mim, nada disso pareceu artificial ou estetizante. Pelo contrário, acrescentou ainda mais um ponto à corajosa honestidade que alinhava o filme do começo ao fim. Sim, as cenas de sexo e amor são realmente intensas; mais do que cenas eróticas, vi-as como encenação de poderosas descargas elétricas, como acontecimentos físicos e psicológicos decisivos na vida das duas mulheres. E isso talvez incomode muita gente não acostumada a esse grau de honestidade no cinema e na vida. Enfim, goste-se ou não de toda aquela coreografia sexual, as cenas de sexo entre Adèle e Emma se impõem, assim como também se impõem as cenas de paquera no gramado do parque, no bar lésbico ou os beijos apaixonados sob uma frondosa árvore, o sol explodindo atrás das duas bocas. É mesmo o caso de perguntar quando foi que vimos beijos de amor mais deliciosos no cinema.http://okupacao.blogspot.com.br/2014/01/ainda-sobre-o-filme-tatuagem-de-hilton.html






Quanto ao mais, trata-se de um bom filme francês. Na primeira vez em que o assisti, algumas cenas me incomodaram. Vendo-o pela segunda vez, as mesmas cenas despertaram reação contrária, pois não mais as vi como confirmação de uma suposta adesão do diretor tunisiano ao esnobismo francês. Antes, pelo contrário, as tais cenas me pareceram então um belo e sonoro tapa na cara das manias e obsessões culturais francesas. Por exemplo, ao longo do filme todo há muitas cenas de escola, e muitas vezes elas são pedantes. No entanto, é preciso reconhecer que Adèle sai transformada de sua experiência escolar e por isso mesmo quer se tornar professora maternal, quer continuar a transmitir às crianças tudo aquilo que jamais lhes chegaria por intermédio de suas famílias operárias. Na sua boca, essa frase constitui uma bela defesa do sistema escol
ar público francês, a ponto de fazer o padrasto burguês e esnobe de Emma reconhecer que, ao menos, a menina simples da periferia sabe exatamente aquilo que quer de sua vida. Por outro lado, também podemos nos perguntar de que terá valido tanto estudo e leitura, tanta ‘formação’ cultural, quando vemos as colegas adolescentes de Adèle promoverem cenas de agressiva lesbofobia.

Como em tantos filmes franceses, “Azul…” não descarta a ‘bavardage’, aquele famoso papo-furado, permeado por leve toque de arrogância. Mas, vendo novamente as cenas da festa em que Adèle alimenta e serve as amigas e amigos pedantes de Emma, estudantes de artes plásticas e marchands, a pretensão arrogante e vazia deles só engrandece a simplicidade de Adèle, que sabe o que quer e só faz o que quer. Mesmo o mau-gosto dos quadros de Emma não faz outra coisa senão expor sua intransigência ou falta de talento e, quem sabe, até mesmo seu oportunismo social, pois é digno de nota que ela somente consiga expor seus quadros horríveis na famosa galeria de Lille depois de trocar Adèle por uma jovem pintora burguesa e bem inserida socialmente.
Para além da opção estética de filmar os sentimentos e o silêncio lacônico de Adèle, outro traço notável deste filme reside em sua cuidadosa observação do abismo social que está predestinado a apartar as duas mulheres em algum momento. Emma é rica, seus pais são 'tolerantes' e aceitam suas namoradas, enquanto Adèle é cria da classe trabalhadora, de família ingênua e pragmática. Esse abismo de classe produz forte mau-estar no espectador, como nas cenas em que as jovens jantam nas casas dos respectivos pais. Na casa de Emma, esta se esquece de avisar aos pais que Adèle, menina pobre, não come ostras e frutos do mar, algo que ela sabia; é claro que este tinha de ser justamente o menú exclusivo do jantar... Ou então, na casa de Adèle, é evidente o constrangimento de Emma diante do prato de macarrão à bolonhesa, “simples, porém no ponto”, diz ela ao pai da outra. E tudo fica ainda pior diante da pergunta materna pelo que ela faz da vida. Ao declarar-se artista, a mãe de Adèle dispara: isso deve ser difícil hoje em dia, pintar quadros, pois “só os mortos ganham dinheiro”; ao que o pai emenda: “e o que faz seu namorado? É bom ter alguém que possa te sustentar e te dar segurança...”


Por fim, o trabalho da jovem, porém já experiente Léa Seydoux (Emma), e o da iniciante Adèle Exarchopoulos (Adèle), é mais do que excepcional. Nada na atuação delas é falso, nada é forçado, nada soa meramente convencional: ambas assumem e vivem seus papéis com total honestidade, apropriando-se deles. O que mais se poderia esperar de duas excelentes atrizes, muito bem dirigidas por Abdelattif Kechiche?