terça-feira, 11 de maio de 2010

O Desprezo, de Godard; ou, quando o cinema pensava...




O desprezo é um filme sobre o cinema, mas não apenas porque Jean-Luc Godard introduz um filme dentro de seu próprio filme, dobrando assim a linguagem do cinema de maneira a produzir inegável força reflexiva. Do começo ao fim, Godard lembra ao espectador que ele é um espectador e que o filme é um filme, uma obra concebida, dirigida, montada, a qual requer atenção e reflexão de quem a assiste para que possa acontecer.
Os recursos estéticos empregados nesse sentido são diversos e se fazem evidentes desde a primeira até a última cena. Não casualmente, o filme se inicia com uma cena de filmagem, durante a qual uma voz em off anuncia os créditos da obra; esse inesperado plano sequência se interrompe quando o operador de câmera, num ato de voyerismo invertido, volta sua objetiva para o rosto dos espectadores: com esse gesto Godard estabelece a cumplicidade essencial do cinema, comprometendo o espectador com o filme enquanto produto de um diretor. A última cena é também a cena final do filme no interior do filme, a Odisséia, e o que vemos é Ulisses contemplando a vastidão do mar e os primeiros vestígios da pátria após longa jornada. O filme de Godard é a odisséia do cinema, porém, sem final feliz ou reconciliação: o que ao final se anuncia é a morte, não apenas dos personagens de Bardot e de Palance, mas a morte ou o fim de um cinema que, à época, ainda era novíssimo, primeiro capítulo de um projeto estético que renovaria a produção cinematográfica francesa, européia e mundial, a nouvelle vague.
A Odisséia, o meta-filme que Godard insere na filmagem de O desprezo, antecipa a liquidação do cinema autoral que pretendia refletir sobre si mesmo e ser mais do que mero entretenimento, prezando a inteligência e a sensibilidade do espectador. Fritz Lang encarna a si mesmo no papel do diretor da Odisséia: ele representa a dignidade da cultura, faz a ponte entre o presente e o passado, entre os homens e os deuses, bem como traz no sangue a própria história do cinema, a começar por Metrópolis, por M e por tantos outros clássicos do cinema alemão pré-barbárie nazista. Jeremy Prokosch (Jack Palance), por sua vez, anuncia o futuro do cinema, sua transformação em produto digerível e banalizado, em suma, representa o poder do dinheiro que move a indústria hollywoodiana do entretenimento massificado. O personagem de Palance aponta para um futuro que é simultaneamente a sobrevida do cinema como cadáver ambulante, como zumbi.

A Odisséia dá a Godard a oportunidade de encenar o enfrentamento entre Lang (o passado do cinema) e Palance (o futuro do cinema), rendendo cenas memoráveis como aquelas rodadas no interior da sala de projeções de uma Cinecità decrépita e a ponto de ser destruída, com o que Godard também já antevê o esgotamento futuro do cinema italiano enquanto ele ainda brilha com Felini, Rosselini, Antonioni, Visconti, Pasolini e Bertolucci. Enquanto Lang mostra fragmentos de cenas que exibem estátuas dos deuses gregos, Palance se diverte (ele diz, a certa altura, que sabe “exatamente como se sentem os deuses”, ao que Lang lhe responde que “não foram os deuses que criaram os homens”, mas sim o contrário), mas ressalva que o público não será capaz de compreender o que assiste. Por isso, decide contratar Paul (Michel Piccoli), um escritor francês de peças teatrais e novelas policiais para reescrever o roteiro supostamente hermético de Lang. Paul não parece disposto a aceitar a nova tarefa, mas Prokosh tem meios eficientes para dissuadi-lo: “quando ouço a palavra ‘cultura’, saco meu talão de cheques”, diz ele enquanto assina uma folha de seu talão nas costas de sua secretária, para depois depositar a vultosa quantia no bolso do escritor. Lang protesta contra a paródia grotesca e recorda que, durante o nazismo, sacava-se outra coisa (o revolver) diante da palavra cultura... Paul ainda argumenta que Lang jamais aceitará que seu roteiro seja reescrito, lembrando ao produtor norte americano que o velho diretor alemão recusara a oferta de Goebels para tornar-se o cineasta do nazismo. Ao que Palance lhe responde: “isto foi em 1933, agora estamos em 1963” e ele aceitará minha proposta, pois do contrário não haverá dinheiro para rodar o filme. Quanto a Paul, Prokosh também está seguro de tê-lo subornado: ele precisa do dinheiro, tanto mais por ser casado com a belíssima Camille (Brigitte Bardot, então a atriz mais cara do cinema europeu).
Se a Odisséia encena a tensão entre o passado do cinema e seu futuro, O desprezo nos coloca diante de um novo desafio, filmar a instabilidade presente do amor. Uma vez mais Godard é profético e enxerga longe: as relações amorosas já não duram mais pura e simplesmente porque foram sacramentadas. Um descuido aqui, uma violência ali, um capricho acolá e tudo está a ponto de se perder, como sabemos hoje muito bem. O desprezo é a encenação do fim e da morte do amor, a conversão do amor e da admiração em desprezo. Mas, como filmar esse instante súbito em que um sentimento se converte em seu contrário? Como filmar o inefável sem explicá-lo de maneira narrativa, isto é, sem justificá-lo e torná-lo óbvio? Este me parece ser um dos mais sérios desafios com que Godard se enfrenta nesse filme que contraria toda e qualquer expectativa previamente construída na cabeça e no desejo dos espectadores.

Queremos ver a encenação do romance entre dois belos jovens e Godard nos dá o seu tédio, seu desencontro, sua perda de sintonia. Queremos desfrutar do fetiche máximo do cinema europeu daquela época, a nudez de Bardot, e quando Godard nos oferece tal espetáculo ele o faz de maneira que somos desviados do corpo-objeto-fetiche para dimensões que transcendem o apelo erótico comercial e fácil. Logo após a cena voyerista do cameraman, Godard nos dá, de imediato e sem qualquer preparação, aquilo que todos queriam, o corpo nu de BB. Inesperada, ainda que desejada, a cena desarma o espectador ao denunciar o óbvio de seu desejo. É como se Godard dissesse a nós: Não era isso o que queriam? Pois, ei-lo aí, desfrutem, gozem... se forem capazes. Isto é, se forem capazes de não perceber que há muito mais e muito menos na excepcionalidade da cena assistida.

Godard desfoca a força erótica da cena pela inocência banal e cotidiana da conversa descompromissada de dois amantes. Camille descreve as partes de seu corpo e pergunta a Paul se ele gosta delas, mapeando assim seu corpo inteiro até concluir que ele a ama por completo. Mas isso é dito de maneira tão despretensiosa que não há como não perceber que o fetiche foi transformado em capricho. Por outro lado, Godard também sublinha algo que excede o conteúdo erótico da cena ao mostrá-la como cena pensada e planejada, que nada tem de natural ou espontânea, recurso obtido pelos filtros vermelhos e azuis que se alternam e fazem com que não tenhamos como nos fixar apenas no objeto do desejo, a derrière nua de BB.
Para não falar na música solene e magnífica de Georges Delerue, fragmentos sinfônicos que, repetidos insistentemente ao longo do filme, transformam-se em personagem. A música atua de maneira a projetar as expectativas e o pensamento do espectador para um lugar 'outro' em relação às próprias cenas exibidas. Mais exatamente, a música exerce sua peculiar atração ao nos projetar, desde o início do filme, para o seu fim e para o fim de tudo mais (cinema, amor, reflexão, etc.), com sua melodia nostálgica e mesmo trágica. Vivemos num mundo do qual os deuses se ausentaram, como diz Lang recitando Hölderlin; vivemos num mundo onde o cinema reflexivo também já nos deu o seu adeus. Resta recordar, ver e rever.

2 comentários:

  1. André, este é um filme que terei que rever e farei isto por agora. Para ser franco, quando vi (deve ter sido uns 15 anos atrás...), foi logo depois de ler o livro do Moravia e confesso que, na época, fiquei muito irritado com o filme. Na verdade, isto quase sempre acontece quando leio antes o livro e depois vou ver o filme - nunca fico satisfeito... Mas, opiniões de início de juventude são sempre suspeitas, geralmente arrogantes e imaturas. De qualquer modo, creio que este é um bom exemplo de como é complicado e difícil aceitar sem ressalvas a teoria de Adorno para o cinema. Abraços, André.

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  2. Acho que as adaptações de livros para o cinema são, em geral, problemáticas. São linguagens muito distintas e em geral o livro tem mais camadas de sentido, é mais complexo. Ademais, o contato do leitor com o livro é muito pessoal, cada um faz uma imagem própria daquilo que lê, de maneira que, depois, é difícil a experiência de não reconhecer na tela aquilo que havíamos imaginado. Eu gosto muito da adaptação do Visconti do Morte em Veneza, de Thomas Mann, mas imagino que muitos leitores devam ficar desgostosos com aquele filme tão belo. Quanto ao filme de Godard, eu também o havia visto há muitos anos atrás e confesso que revê-lo agora foi outra coisa, muito melhor!

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