sábado, 4 de dezembro de 2010

Dzi Croquettes - documentário

Assisti duas vezes ao belo documentário de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, Dzi Croquettes. O filme narra a trajetória do histórico grupo teatral que revolucionou a cena cultural paulista, carioca e parisiense a partir de meados dos anos 70. Desde os anos 90, quando a Aids e alguns assassinatos não resolvidos deram cabo à vida de vários integrantes do grupo, eles estavam praticamente esquecidos. O documentário recupera a memória do grupo e põe novamente em cena a transgressão de gênero que era central em suas apresentações. Por estes dois motivos, o documentário é mais do que oportuno e chega em boa hora.
Em meio ao período mais sombrio da ditadura brasileira, no começo dos anos 70, um grupo de jovens talentosos, inconformistas e iconoclastas se reúne e monta um espetáculo no qual dançam, cantam e interpretam... todos vestidos de mulher, hiper-maquiados (purpurina e imensos cílios postiços, batom, blush e o que mais der), quase nus, porém sem esconder que são homens, musculosos, peludos, barbados. A estética ambígua dos Dzi Croquettes valeu-se do humor e do talento para promover uma crítica radical dos valores dominantes, embaralhando a identidade de gênero e promovendo um carnaval anti-repressivo que despertou a ira dos censores e que ainda tem muito a nos ensinar.
Em pouco tempo os Dzi Croquettes chamaram a atenção do meio cultural carioca, sobretudo depois que o coreógrafo norte-americano Lennie Dale se incorporou à trupe e lhe impôs um profissionalismo e um nível de qualidade jamais vistos até então no Brasil. O filme mescla as apresentações do grupo no Brasil e em Paris ao depoimento de músicos, atores e diretores de teatro conhecidos de todos nós, como Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Marília Pera, Beth Faria, Miguel Falabella, José Possi Neto, entre outros. Apenas para dar uma ideia da importância dos Dzi Croquettes, Secos e Molhados e As frenéticas não teriam existido sem eles, sem falar que Liza Minelli tornou-se a embaixatriz do grupo no exterior.

Sensuais, debochados, críticos, hilários, talentosos, criativos, geniais, apaixonados, experimentais... Os adjetivos poderiam ser multiplicados com facilidade, mas nada se compara a vê-los em cena: seus corpos magros e flexíveis, as coreografias impressionantes de Lennie Dale, a capacidade de extrair o luxo do lixo, o humor desbocado, a entrega total à arte e à vida comunitária, o amor livre e exagerado, tudo isso salta aos olhos do espectador e faz pensar num tempo não tão distante, porém já muito longínquo de nossos dias.

De algum modo eu sabia de sua existência, mas nunca os havia visto em cena. Quando fiz Ciências Sociais na Unicamp, nos anos 80, ainda havia algum rumor difuso a respeito do grupo. Seus trejeitos, suas expressões antológicas - "Tá boa, santa?"; "Eu, hein?"; "Sou tiete!" - ainda eram presenças vivas e se faziam acompanhar do deboche sarcástico em relação ao modelo de identidade sexual binário, homem-mulher. Não era raro que amigos se cumprimentassem com 'selinhos' na boca, que usassem batom, que promovessem explicitamente a confusão e a ambiguidade de gênero. Fiz parte de um DCE anárquico que enchia assembléias porque provocava a curiosidade dos alunos: 'passávamos' em sala de aula maquiados, assim como maquiados desafiávamos a ira do interventor malufista, o então reitor José Aristodemo Pinotti. Tudo isso ainda lembrava o espírito dos Dzi Croquettes, embora eu não soubesse quase nada a seu respeito então.
Os anos 90 puseram fim a tudo aquilo. A ascensão mundial do neoliberalismo, aqui revestido de'social-democracia' à brasileira, mais o horror da Aids, silenciaram aquele experimentalismo que não reconhecia fronteiras entre arte, cultura, política e questões de gênero. Tudo era uma coisa só e o que nos importava era transgredir as fronteiras. Muito possivelmente, aquele ímpeto experimental terá desaparecido para sempre de nosso presente. Somos demasiado organizados até mesmo em nossas loucuras, não casualmente experimentadas como boas neuroses do cotidiano.


Para mim, assistir às loucas performances dos Dzi Croquettes foi como reviver um passado perdido. Mas o filme promove algo mais que nostalgia e é por isso que ele me parece tão bem-vindo. Explico-me.


Pela primeira vez na história temos uma mulher presidenta, em cujo discurso de vitória se acusa a desigualdade entre homens e mulheres logo de saída, como problema a ser superado. Cada vez mais os movimentos de minorias conquistam visibilidade, despertando, inclusive, um aumento dos ataques por parte de todos os reacionários que se vêem ameaçados com as transformações no âmbito dos direitos e da cultura. A discussão em torno da legalização do aborto começa a amadurecer. Em suma, cada vez mais parece que o cenário político brasileiro será invadido pela temática da inclusão de novos direitos e novos 'sujeitos' políticos. Não foi por acaso que a campanha eleitoral assumiu colorações tão quentes e polêmicas, assunto ao qual pretendo dedicar outro texto.
De todo modo, parece-me que a política nacional entra agora em nova fase e as fronteiras entre direita e esquerda começam a se deslocar e se definir em torno àqueles temas. Nesse contexto, a exibição do documentário sobre os Dzi Croquettes é mais do que oportuna, é um gesto político poderoso, pois mostra que muitas coisas podem ser diferentes do que hoje são, pois, inclusive, assim já o foram antes.
Apenas uma nota preocupante. Nas duas vezes em que fui ao cinema a audiência não chegava a 10 pessoas. Deve haver algo muito errado nisso, pois o filme foi premiado em festivais nacionais importantes, como o do Rio de Janeiro, e ganhou certa notoriedade nacional. Será que Curitiba ainda não está preparada para o radicalismo estético e político dos Dzi Croquettes?

5 comentários:

  1. Andre, belo texto. Tb sai bem tocado do filme mas talvez nao pelos mesmos motivos que vc.
    Penso que seu texto repete um raciocinio bem recorrente: antes era assim, agora 'e assado e mais careta. As razoes, de lados opostos, sao resistencia/ ditadura no antes e neoliberalismo/ AIDS no agora [?]. Alias, vc aponta com algum elogio [otimista ou nao, mas elogio] para o fato de que hoje novas bandeiras e sujeitos estao politizando o debate e a politica, correto? Mas veja, a propria Aids, passado os excessos e as igorancias dos 1980, foi a plataforma a partir de onde os movimentos gays se fortaleceram nos anos 90 e ateh hoje. O paradoxo: a macula foi a ponte ideal para desfazer um estereotipo, no caso das organizacoes LGBT.
    Hoje somos mais caretas? Sim e nao, mas eh justamente nessa caretice que habita alguma chance de radicalidade...
    Estou pensando e digitando...

    ResponderExcluir
  2. Veja, quis apontar dois lados da história: por um lado, ficamos menos criativos, menos livres, mais burocráticos. Os anos 90 têm muito a ver com isso. Aquela liberdade toda se perdeu e não volta mais, pelo menos não daquele jeito. Tudo bem! Tenho saudades, mas não adianta lamentar nada. Aí é que entra o outro lado da história, aquele que pertence a nós hoje: a exibição do filme, agora, constitui um gesto político importantíssimo, pois contribui para dar visibilidade aos novos 'sujeitos' e aos novos direitos políticos - a chamada política das minorias - aspecto que considero central na agenda política nacional dos próximos anos. Isso é o que importa pensar agora. As reminiscências são puramente pessoais, importam menos do que a agenda política de nosso tempo. Somos mais caretas, mas isso é irrelevante em face das tarefas políticas que ainda nos esperam.

    ResponderExcluir
  3. Olá, povo do Okupação!
    Parabéns pelo texto e pelas contextualizações históricas que ele faz! Tive sensações parecidas ao ver Dzi Croquettes e, confesso, saí do cinema um tanto emocionado com a rebeldia de gênero que o grupo promoveu em plena ditadura! Uma rebeldia alegre, festiva, alegórica que nos faz pensar que, talvez, o problema de nossas paradas gays não esteja na festa, na música, na purpurina, nos bofes de sunga e nas travas peladas (como acusam alguns), mas justamente na ausência da dimensão intelectual e política, ou ainda, no encapsulamento identitário que nossas contemporâneas celebrações gays provomem - tudo que os Dzi não faziam. Dá sim pra ser subversivo fazendo rir, fazendo festa, fazendo caras e bocas, fazendo pose, fazendo gênero! Resta saber como nesses gestos performativos todos faremos borbulhar o "queer" do corpo, o "queer" da vida, mesmo diante de uma agenda política que nos quer careta em face das tarefas que ainda temos pela frente. Até podemos ser caretas diante dos novos direitos políticos que perseguimos, mas nunca, jamais, "pelegos" (como se dizia em épocas ditas-mais-duras!

    ResponderExcluir
  4. André!!! Que texto mais bonito! E sensível! E importante!! Fiquei aqui agora curiosíssimo!! Espero que esse documentário chegue logo por aqui!! Meus parabéns!! Abraço forte,
    Fernando Rodrigues

    ResponderExcluir
  5. Leonardo Lichote - O Globo

    RIO - Movimento Retaguarda. É como Ciro Barcelos está chamando o conjunto formado pelo lançamento do livro e pela peça e a exposição que, a partir desta quarta-feira, ocupam o Teatro Glauce Rocha, celebrando os 40 anos dos Dzi Croquettes. Integrante do revolucionário grupo, Barcelos explica que a expressão vai além do saudosismo ou até do conservadorismo que pode sugerir uma primeira leitura — na verdade, está mais para o caráter subversivo da interpretação mais maliciosa:
    — É uma trincheira cultural para preservar essa vanguarda perdida, brasileira, tropical, que está à deriva.
    A força e a originalidade tropical do grupo podem ser avaliadas sob óticas diferentes por quem for ao Glauce Rocha. A exposição “Dzi Croquettes — Te contei?”, que será aberta nesta quarta-feira, às 18h, traz 60 fotos de peças e bastidores (muitas inéditas), além de figurinos originais e cartazes. Na ocasião, será lançado o livro homônimo, com imagens e depoimentos de membros do grupo, como Barcelos, Bayard Tonelli, Claudio Tovar, Paulette e Lennie Dale. E no dia 29 chega à casa o espetáculo “Dzi Croquettes em Bandália”, montado em 2012 — início do Movimento Retaguarda.
    — Não quis montá-la por um capricho artístico, mas por uma insatisfação com o cenário atual do teatro brasileiro, que está estagnado, muito careta. Estamos perdendo nossa tropicalidade artística, antropofágica, dando lugar à uma linguagem teatral importada de musicais americanos que não acrescenta nada à nossa própria linguagem teatral — avalia Barcelos. — Nosso teatro musical está oprimido porque essas montagens americanas estão virando padrão de qualidade. Enquanto artista, estou pouco me lixando para “A noviça rebelde”, Judy Garland, nem os americanos mais querem saber disso. Pus a peça em cartaz para gritar isso. É um espetáculo novo, com jovens atores, e que traz de novo esse conceito subversivo dos Dzi Croquettes.
    A exposição, no mesmo espírito da peça, procura trazer a atmosfera libertária que o grupo instaurou em meio à ditadura militar.
    — O conceito é recuperar um pouco o clima daqueles anos 1970 e como o grupo Dzi Croquettes se posicionava dentro daquele momento — explica Barcelos. — Tem uma reconstituição de nosso cenário, as paredes trazem pinturas nossas. E são projetadas imagens feitas em Super-8, há uma maravilhosa de Lennie Dale dançando.
    Organizado por Bianca Clark, Juliano Werneck e Radha Barcelos, o livro “Dzi Croquettes — Te contei?” reúne em 72 páginas fotos e depoimentos de onze integrantes, falando sobre o começo, os espetáculos e o fim do grupo (retratado no premiado documentário de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, em 2009). Cada capítulo tem uma foto de abertura feita em 1973 por Antonio Guerreiro.
    — A importância do livro, como da exposição, é afirmar que esse grupo existiu, foi revolucionário e influenciou coisas que vieram depois, como o “TV pirata”, o besteirol. Eles vêm reafirmar o sentido libertário de se relacionar com o palco, uma proposta de liberdade de expressão, sexual e artística.
    Barcelos crê que o espírito dos Dzi Croquettes se afina com as atuais manifestações nas capitais brasileiras:
    — Postei no Facebook fotos da passeata com a legenda: “O sonho não acabou”. Estou fazendo uma campanha para que os artistas saiam de suas mansões e liderem essas manifestações, como fizemos nos anos de chumbo. Só espero não ser exilado dessa vez. Se bem que o exílio saiu pela culatra, porque fizemos sucesso lá fora e os militares tiveram que nos engolir — lembra o ator, notando que seu espetáculo será apresentado no Central Park em setembro e chegará ao circuito Off-Broadway em 2014. — Mas o mais importante é fazer essa revolução aqui.


    Leia mais: http://extra.globo.com/tv-e-lazer/imagens-textos-danca-para-celebrar-40-anos-dos-dzi-croquettes-8735071.html#ixzz2WkAHBBMF

    ResponderExcluir