quarta-feira, 7 de abril de 2010

Correspondências I


Uma recente viagem a Cuba despertou meu interesse pela literatura cubana. Estou lendo agora o romance que projetou Alejo Carpentier à cena literária mundial, Os passos perdidos, traduzido por Marcelo Tápia e publicado em 2008 pela Martins Fontes. O livro conta a história de um musicólogo desencantado que recebe a missão de encontrar certos instrumentos musicais indígenas para trazê-los ao acervo do museu de uma universidade norte-americana. Quanto mais se embrenha na amazônia venezuelana, deixando para trás os vestígios da civilização moderna, mais sente vibrar em seu corpo e em seu espírito o apelo de uma natureza que lhe impõe seus mistérios e exuberância. Logo após o instante da mágica conversão às forças da natureza primordial, em plena selva, o narrador toma em suas mãos a Odisséia que um mineiro grego lhe oferecera de presente, poucos dias antes de desaparecer no turbilhão verde em busca de ouro e diamantes. O narrador abre o livro ao acaso, "topando ... com um parágrafo que me faz sorrir: aquele em que se fala dos homens que Ulisses despacha ao país dos lotófagos, e que, ao provar a fruta que dava ali, esquecem-se de retornar à pátria. 'Tive de trazê-los à força, soluçantes' - conta o herói - 'e acorrentá-los sob os bancos, no fundo de suas naus'. Sempre me incomodara, no maravilhoso relato, a crueldade de quem arranca seus companheiros da felicidade encontrada, sem oferecer-lhes outra recompensa além de servi-lo. Nesse mito vejo como que um reflexo da irritação que causam sempre à sociedade os atos de quem encontra, no amor, no desfrute de um privilégio físico, num dom inesperado, o modo de subtrair-se às fealdades, proibições e vigilâncias padecidas pelos demais." (pp. 214-215)
Não importa se Carpentier leu ou não a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer. Acho pouco provável que a tenha lido, embora seu romance seja de 1953. Mas essa não é a questão. Seja como for, o romance parece estabelecer inúmeras correspondências com a temática abordada no ensaio filosófico dos frankfurtianos. O narrador é musicólogo, como Adorno; como Adorno, Horkheimer e tantos outros pensadores de meados do século passado, também o narrador de Os passos perdidos conheceu de perto "a Mansão do Calafrio, onde tudo era testemunho de torturas, extermínios em massa, cremações, entre muralhas salpicadas de sangue e de excrementos, montões de ossos, dentaduras humanas empilhadas num canto a pazadas, sem falar das mortes piores, obtidas a frio, por mãos com luvas de borracha, na brancura asséptica, nítida, das câmaras de operações. A dois passos daqui, uma humanidade sensível e cultivada - sem fazer caso da fumaça abjeta de certas chaminés, pelas quais haviam brotado, um pouco antes, preces uivadas em iídiche - seguia colecionando selos, estudando as glórias da raça, tocando pequenas músicas noturnas de Mozart, lendo a pequena sereia de Andersen aos meninos. Isto também era novo, sinistramente moderno, pavorosamente inédito." (pp. 102-103) Além do recurso à Odisséia em um momento estratégico de sua narrativa, também ele fundamental no ensaio dos frankfurtianos, Carpentier descreve a viagem de um homem moderno, esclarecido, rumo à contracorrente do tempo, isto é, rumo a um tempo presente-passado no qual homem e natureza estipularam um pacto entre si, tempo em que o homem ainda desconhece a renúncia e não se priva da plena fruição da felicidade. Será que Carpentier não estaria dando contornos mais precisos (e por isso, talvez, mais problemáticos) àquele horizonte utópico de reconciliação entre homem e natureza, apenas balbuceado por Adorno e Horkheimer?

4 comentários:

  1. Creo, André, que lo real maravilloso se gestó en Carpentier desde siempre, incluso antes de ser concepto elaborado. Y quizás sea este uno de sus méritos mayores, un diálogo respetuoso con la naturaleza, enaltecedor.
    Me enorgullece, además, que tu viaje a Cuba te haya abierto las puertas de la más refinada literatura, pero también de la crítca. Que te haya permitido ver y comprender a una Cuba mucho más real de lo que cualquier medio pueda dibujar. No importa si estás de acuerdo o no con ella, lo importante es tu agudeza.
    Alexander

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  2. Muchísimas gracias por tu comentario. Sabes que Rita e yo pensamos escribir un pequeño relato de nuestro viaje a Cuba? Quizás ya lo empezemos por acá, en el blog.

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  3. É um belo livro, mas tem algo de uma physis irrecuperável também.
    Abs
    Róbson

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  4. Olá Róbson,
    Sim, se compreendo o que você diz a respeito do irrecuperável da physis, concordo, parece haver uma nostalgia do impossível na maneira como Carpentier recria a natureza e a integração do homem com ela. Pergunto-me se essa impossibilidade nostálgica também não contamina a reflexão de Adorno...

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