Espaço livre de pensamento, crítica cultural e política. Num mundo de fronteiras bem delimitadas, Okupação designa o ato de abrir e reinventar espaços de liberdade, de criação reflexiva, de contestação e resistência. Afinal, onde começa a política e termina o cinema? Onde acaba o cinema e começa a literatura? Onde a literatura não é política?
quinta-feira, 15 de abril de 2010
De volta aos passos perdidos
Confesso que quando iniciei a leitura de Os passos perdidos não sabia se chegaria a terminá-lo. Parecia-me que a obra tinha sua data de validade expirada. Por certo não estava em questão a habilidade narrativa de Carpentier, cuja aptidão para a recriação barroca de situações fantásticas é inegável e com facilidade atinge o virtuosismo. Veja-se, por exemplo, seu romance Concerto Barroco, de 1974, publicado no Brasil em 2008 pela Companhia das Letras. Em uma cena memorável, Carpentier faz encontrarem-se e tocarem juntos Vivaldi, Scarlatti e Haendel, aos quais se somam um rico viajante mexicano fantasiado de Montezuma (estamos em pleno Carnaval de Veneza) e seu pagem negro cubano. A certa altura, para escapar ao ruído dos festejos de rua, os personagens refugiam-se no interior de um convento. Arma-se então um concerto de improviso, à maneira de uma jam session jazzística, que culmina com o negro percutindo ritmos caribenhos que desafiam a destreza e a diligência dos compositores, do coro e da orquestra. A cena se encerra num ritual carnavalesco mais do que profano, em que todos dançam e serpenteiam pelo convento, conduzidos por Montezuma.
O problema com Os passos perdidos me parecia ser a 'inteireza' metafísica de seu narrador, sempre completo, certo e seguro de si em seu tédio e em seu júbilo, em seu espanto, em seu medo e em suas incertezas. Ultimamente vinha lendo muito Roberto Bolaño, Ricardo Piglia e Roberto Arlt, o que talvez explique minha desconfiança face à aparente densidade subjetiva do narrador de Carpentier. Veja-se a descrição do tédio burguês do artista de vanguarda: "Quando se festejava o meu aniversário em meio às mesmas caras, nos mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro, assaltava-me invariavelmente a idéia de que isto só diferia do aniversário anterior na aparição de uma vela a mais sobre o bolo cujo sabor era idêntico ao da vez precedente" (p. 11). A descrição é exata, mas demasiado bela, demasiado consciente, demasiado refletida, por assim dizer. Ou então, leia-se essa descrição da nostalgia: "Um doloroso amargor avolumou-se em minha garganta ao evocar, através do idioma de minha infância, tantas coisas juntas. Decididamente, estas férias me enterneciam." (p. 14). Ou a descrição de júbilo no primeiro encontro com o rio caudaloso que começa a penetrar a selva amazônica: "Nada faz ruído, nada se choca com nada, nada roda nem vibra. Quando uma mosca em vôo dá com uma teia de aranha, o zumbido de seu horror adquire o valor de um estrondo. (...) Permaneço mais de uma hora aqui, sem me mover, sabendo quão inútil é andar onde sempre se estará no centro do contemplado." (p. 119) Mesmo as dúvidas e o medo, ao penetrar no coração da selva, são expressas de maneira perfeita e completa: "Já não se sabia o que era da árvore e o que era do reflexo. Já não se sabia se a claridade vinha de baixo ou de cima, se o teto era de água, ou a água, solo; (...) Com o transtorno das aparências, nessa sucessão de pequenas miragens ao alcance da mão, crescia em mim uma sensação de desconcerto, de total extravio, que resultava indizivelmente angustiosa." (p. 174) Recordem-se ainda as evocações do amor, da pureza, do prazer e da felicidade descobertos em plena selva amazônica, que mencionei na última postagem sobre o assunto (Correspondências I).
Ocorre que ao narrador impor-se-á o mesmo destino trágico a que já haviam sido submetidos os heróis do relato homérico: aqueles que, tendo se fartado do lótus, foram depois obrigados a renunciar ao êxtase. Após sua conversão às forças primordiais da natureza, o narrador será arrancado de seu idílio e todos os seus esforços posteriores por recuperá-lo fracassarão. Ocorre, pois, que a novela se chama, ao fim e ao cabo, Os passos perdidos. O que propriamente se perde enquanto acompanhamos tais passos? Justamente aquela integridade subjetiva substancial que acompanhara a voz do narrador ao longo do romance. Ao terminar a leitura, estamos uma vez mais às voltas com os farrapos maltrapilhos de uma subjetividade esgarçada e descosturada por dentro. Chegamos, pois, ao limiar dos romances latino-americanos que nos são contemporâneos. Por um caminho elíptico e cheio de desvãos, os passos de Carpentier me trouxeram de volta aos personagens anêmicos de Piglia e Bolaño.
Marcadores: arte contemporânea
Correspondências II
Assinar:
Postar comentários (Atom)
¿Existen otros pasos perdidos?
ResponderExcluirAmigo André, es un placer leerte. Esta vez creo oportuno que te comente mis impresiones sobre la metáfora que puede ser este título, y su contemporaneidad. Creo que hay muchos pasos perdidos. El Ilustre S. Freud tuvo abien decir que "No existe ningún punto de partida si no se sabe bien a dónde ir". ¿A dónde vamos? ¿O es que no vamos, nos llevan? Yo no tengo respuestas, pero hay algunas ideas rondando mi cabeza. Por ejemplo, la internet, que tanto nos une, nos acerca, nos facilita la vida, es también un medio que favorece que las personas se comprometan menos. Asistimos a una nueva forma de configurar la subjetividad. Esta vez mediada por la imagen que alguien nos ha puesto en un computador. Ya no es necesario que vaya a la plaza de la esquina a disfrutarla, si la tengo en internet. También los cantos de los pájaros... ¿Pero hay algún sitio donde encuentre lo que siento cuando estrecho la mano al otro? ¿Hay algo que se acerque al valor de mirar a los ojos, de rozar una mejilla?
Para nada estoy en contra de la tecnología. Sólo que esta nueva forma de mediación me priva de otras formas que no están agotadas aun. "Es una opción", dirán algunos. Lo sería si fuéramos conscientes de que el compromiso para por el roce de la piel; por escuchar, "en vivo" el canto del pájaro; por tropezar con la pìedra del camino.
Se pierden nuestros pasos, si no nos detenemos a pensar en el mundo y para el mundo tal cual es, y no tal y cual nos lo presentan, que no es la única forma de ser.
Un abrazo fraterno.
Alexander
En muchas cosas comparto tus interrogaciones. Aquí tocamos el tema muy complejo de la tecnología y su contrapartida, la pérdida de la physis o de la naturaleza, central en la reflexión filosófica de Heidegger y también de Adorno y Horkheimer. Una cosa (la tecnica moderna) no vá sin la otra (el fin de la naturaleza) y por esto los pasos perdidos de Carpentier, a la vez que nos presentan la imposibilidad contemporánea de acercarse y fusionarse con la naturaleza, también nos esclarecen respecto a la subjetividad mutilada que es la nuestra. Me pregunto si los cambios contemporáneos de la subjectividad promocionados por la moderna tecnología y la pérdida de la relación con la naturaleza no son uno sólo y mismo movimiento histórico. Habrá como resistir a este proyecto anónimo de las pérdidas? A lo mejor, apenas si intentamos okupar las pequeñas grietas de libertad y pensamiento que aún quedan por ahí, casi olvidadas bajo los escombros del mundo plástico y luminoso (luces de néon, claro) que es el nuestro.
ResponderExcluirPues sí, desde mi entender, los cambios contemporáneos no sólo son un mismo y único movimiento histórico (pilicrómico, diverso, pero único), sino que además es irreversible, a no ser que llegue el exterminio. No sería, entonces, vuelta atrás, sería destrucción. Y claro que los cambios en la subjetividad están ahí, los que no estamos muy al tanto somos nosotros (los seres humanos) preocupados en otras cosas. El más grande de todos los cubanos (José Martrí) dijo: "Se abren campañas por la libertad política; deberían abrise con mayor vigor por la libertad espiritual, por la acomodación del hombre a la tierra en que ha de vivir". Enhorabuena.
ResponderExcluirAlexander