segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ainda sobre o filme Tatuagem, de Hilton Lacerda: novas considerações



Filme bom é aquele sobre o qual muito há o que dizer. Assim, volto ao filme Tatuagem, de Hilton Lacerda, comentado em post anterior, que visava chamar a atenção para os temas gerais do filme, indicar possíveis correlações com outras produções cinematográficas recentes e com movimentos políticos de inspiração queer, como a Marcha das Vadias. Agora, gostaria de propor reflexões um pouco mais específicas sobre Tatuagem, e para isso farei alusão a algumas de suas cenas, de modo que o texto que se segue é contra-indicado àqueles que porventura ainda não o tenham assistido.

Como todos sabem, tatuagem é uma inscrição, uma incisão colorida e dolorida que marca a pele, que fere o corpo para exibir uma mensagem ou um símbolo que não mais se apagam, que duram no tempo e assim estabelecem um elo de ligação entre presente, passado e futuro. Por certo, o título do filme faz menção à sequência em que Fininha (Jesuíta Barbosa) se faz tatuar por seus colegas de exército, que lhe desenham um tosco coração contendo em seu interior a letra C, de Clécio (Irandhir Santos), na altura de seu próprio coração, como prova de amor e admiração pelo líder do grupo de teatro por quem ele se apaixonou. Mas essa tatuagem afetiva também exprime de maneira condensada o assunto mesmo de toda a película, que trata justamente de experiências que marcam o corpo de maneira indelével. Em uma palavra, o filme nos mostra como fazer do corpo um instrumento de amor, de erotismo, de beleza e de luta política contra a rigidez dos valores e comportamentos militares que comandaram o país por vinte longos anos, e que ainda hoje teimam em não desaparecer de nossa paradoxal democracia.


Assim, Tatuagem é um filme político, mas sua política não se faz com partidos, estados, eleições, organizações sociais ou disciplinas militares, mas com palavras-de-ordem debochadas, irônicas, corrosivas, que têm o cu como motivo central: o cu como lugar de prazer e de subversão, como princípio estético que orienta a criação teatral, como lugar de diversão a todos garantida, o cu como lugar de um baile mais que profano, pois que profana a ordem vigente, fustigando a censura militar que logo se apressa em proibir tais espetáculos 'imorais'. Uma das cenas mais divertidas e marcantes do filme, encenada duas vezes, mostra os atores e as atrizes do cabaré Chão de Estrelas todos nus, cobertos de purpurina, vistos de costas pelos espectadores, as bundas empinadas e rebolantes, dançando ao som da divertida Polca do Cu. Esta, por sua vez, nos esclarece que o dito cujo não é UM, mas MUITOS, com qualidades, atributos e predicados distintos e variados. Esta cena é precedida pelo prólogo desbocado de Clécio, que explica as virtudes democráticas do órgão que todos temos, e que, talvez, até mesmo ELE o tenha, o cu onisciente e onipresente, amém.



A política de Tatuagem é uma política da vida em comum, da vida comunitária no casarão de Olinda, onde habitam os atores e as atrizes do cabaré popular, como também aconteceu com o grupo carioca Dzi Croquettes, da mesma época e da mesma cepa (ver http://okupacao.blogspot.com.br/2010/12/dzi-croquettes-documentario.html). Tatuagem é uma crônica da vida-artista vivida em comum, é uma crônica de vidas vividas à margem dos conceitos e preconceitos burgueses, crônica cotidiana das vidas livres, alegres, autogestionárias e críticas, vidas cínicas no melhor estilo daquilo que Foucault certa vez denominou como as "posteridades transhistóricas" do cinismo antigo. 





De fato, boa parte do filme transcorre em meio a esta vida em comum, com suas festas malucas, seus trabalhos manuais, os ensaios teatrais, as pequenas diversões na rede embalada por maconha e conversas desconexas sobre o filme Laranja mecânica, então recém-lançado no Rio de Janeiro, as dificuldades econômicas da vida alternativa, bem como a necessidade de inventar uma ordem coletiva não autoritária, compartilhada democraticamente. Afinal, anarquia não é bagunça e uma das cenas mais tocantes mostra Clécio e Paulette entre mal disfarçadas lágrimas, discutindo não apenas a relação afetiva entre os dois, interrompida e transformada pela chegada de Fininha, mas também a desordem mental de Paulette, desde que ele passa a se entregar a um traficante que o está viciando em cocaína, prejudicando assim seu envolvimento com o grupo e seu trabalho como ator. É comovedor ver como Clécio se aproxima de Paulette e o chama à razão da maneira mais delicada e amorosa, mostrando-nos que autoridade não se confunde com autoritarismo e que ordem, engajamento e dedicação tampouco se reduzem à disciplina militar que impera no quartel. 




Um quartel, aliás, saturado de sexualidade e de desejos homossexuais, expressos, porém, sempre de maneira violenta, seja na pegação furtiva, às escondidas, seja na violência verbal e física sob o olhar de todos. De maneira perspicaz e refinada, Hilton Lacerda escapa à contraposição simplista entre a vida-artista e a vida militar, pois mesmo o antro da ordem está permeado pela desordem, já que também ali o cu faz valer seus imperativos. Não é casual que o coração de Fininha seja tatuado pelos companheiros de ofício militar, e que ele próprio se envolva sexualmente com um sargento dentista da corporação, ferindo o coração de Clécio e despertando desconfiança nos outros moradores do casarão: seria um infiltrado? Tampouco é casual que o recruta que por ele é obcecado se empenhe com tanto vigor na repressão ao último espetáculo do Chão de Estrelas, aquele do qual também participa o soldado Fininha, empinando em público seu cu tão disputado.


Mas Tatuagem, sendo tudo isto (e muito mais), é também e sobretudo um filme sobre o amor entre dois homens. A esse respeito vemos ali exemplos primorosos de como o amor, o erotismo e o próprio sexo ainda geram fortes efeitos político-afetivos, capazes de desestabilizar padrões bem estabelecidos de comportamento. São lindas as cenas de flerte no cabaré, na noite do primeiro encontro, particularmente quando Clécio, vestido como mulher e com voz feminina, porém portando barba, interpreta a magnífica canção de Caetano Veloso, "Esse cara", olhando fixamente nos  olhos de Fininha. Seu gestual, sua maneira de olhar e revirar os olhos, a combinação das roupas femininas e dos pêlos masculinos, tudo isso conspira para nos fazer lembrar dos Dzi Croquettes, de mais a mais, já explicitamente homenageados pelo codinome 'Paulette'.



 A paquera entre Clécio e Fininha evolui para o flerte decidido na cena em que os dois dançam romanticamente ao som de "A noite do meu bem", na voz de Dolores Duran, outro primor de erotismo, raras vezes visto no cinema nacional ou internacional. É maravilhoso acompanhar o desenrolar da cena, com Clécio empunhando a mão de Fininha, ajustando-se a ele para conduzi-lo na dança, moldando com engenho seu corpo ao dele, enquanto a velha gravação do LP entoa: "Quero ternura de mãos se encontrando..." 






Muito naturalmente, a sequência se conclui com uma magnífica trepada, coreografada sob medida para não deixar qualquer dúvida de que o que vemos ali é o amor e o sexo entre dois homens. Há ainda as lindas cenas do namoro no mar, entre beijos salgados e carícias que atiçam corpos reluzentes sob o sol dourado do Recife. Se alguém se recordar de cenas mais bonitas e eróticas no cinema brasileiro, que fale agora...O brilho solar dessas cenas só é igualado pelos beijos de Emma e Adèle em Azul é a cor mais quente.http://okupacao.blogspot.com.br/2013/12/normal.html


Por fim, retorno a um tema que me parece decisivo e ao qual já havia feito referência em post anterior: a sutil comunicação temporal entre passado, presente e futuro que o filme parece estabelecer. Tatuagem é um filme sobre nosso passado, sua história se desenrola em 1978, quando a longa ditadura militar finalmente entrava em seu período de distensão, prenunciando seu derradeiro esgotamento. Essa comunicação temporal é fundamental no filme, que não casualmente tem por chamada a frase: "No futuro, o amor e a liberdade serão como num filme". Na narrativa de Lacerda, essa alusão ao futuro se estabelece pelo recurso ao filho quase-adolescente de Deusa e Clécio, bem como pelo filme dentro do filme, concebido como mensagem lançada ao mar dentro de uma garrafa que hoje nos chega às mãos. 



Ao longo do filme a criança aparece pouco, mas todas as suas aparições são significativas; numa delas, Clécio reclama com Deusa por ela ter levado o menino ao cabaré, que ironiza o pai enquanto a mãe sentencia: "Clécio, não existe lugar bom ou ruim para criança, o que existe é educação boa ou ruim." Basta essa frase para que caiam por terra todos os preconceitos relativos à suposta boa educação das crianças. E de fato, o menino convive aberta e tranquilamente com as bichas, os sapatões, o amor livre e as drogas, e sua expressão contínua de confiança e felicidade estampada no rosto é quase uma prova de que haverá de haver mais e melhor vida no futuro.



Quanto ao filme dentro do filme, creio que ele mereceria longas considerações, mas falta-me cultura cinematográfica para tanto. À primeira vista não pareceria haver nada muito especial ali, nada mais, talvez, que um apanhado de imagens sem nexo, pontuadas por algumas poucas considerações em off do cineasta-filósofo, que as anuncia como imagens destinadas ao futuro. São imagens oníricas, de forte poder simbólico, talvez sejam até mesmo imagens totêmicas ou mitológicas para nós, brasileiros; seja como for, são imagens emblemáticas, que grudam na nossa memória e provocam nossa imaginação. A despeito de desconexas, elas parecem possuir um fio condutor secreto: para mim, ao menos, era como se Lacerda pretendesse amarrar o cinema de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, mais o cinema italiano de Pasolini e de Felini, ao próprio cinema que ele agora vem nos oferecer, no começo do século XXI. Vemos nessas imagens todo seu apego ao universo popular do circo mambembe e do teatro de rua, mas tais imagens também contêm outras referências temporais. Simultaneamente, elas fazem referência a um passado brasileiro tingido de cores e traços épico-mitológicos, com seus índios e índias, sambistas, bichas, sapatões e travestis, ao passo em que também aludem ao futuro de uma civilização tecnológica periférica, que tenta se arrumar com o pouco de que dispõe. Penso, em particular, nas imagens do astronauta de lata e bugigangas, que caminha desorientado em meio a bananeiras e índias que o veneram espantadas. 



O filme dentro do filme tem a nós, seus espectadores, como destinatários; é a nós, que vivemos em outra época, que tais imagens são endereçadas, é a nós que elas procuram dizer algo. Mas o quê? É difícil dizer. Talvez tais imagens sejam a síntese utópica de um país (im)possível. São imagens captadas pela lente filosófica e delirante de Lacerda, um cineasta que sabe que a força do cinema não reside apenas na coesão da história narrada, mas, sobretudo, nas imagens mesmas, com seus acenos para novas e velhas possibilidades existenciais, sempre dotadas de cor local e historicidade. 


PS: Acabo de descobrir que o cineasta-filósofo de Tatuagem está inspirado no cineasta-filósofo Jomard Muniz de Britto, que documentou em super-8 algumas atividades do grupo teatral Vivencial Diversiones, do Recife, ao qual alude o Cabaré Chão de Estrelas, do filme de Lacerda. Vejam o vídeo e escutem a bela, enigmática e instigante canção de Caetano Veloso, "Pelos Olhos" http://youtu.be/JGaooahdba8

Mais informação sobre o filme Tatuagem em: 
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1393907-exposicao-no-rio-reve-producao-experimental-de-pernambuco.shtml

   

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