Esqueça o estardalhaço midiático em torno de Ninfomaníaca, de Lars von
Trier. Esqueça as polêmicas destinadas a torná-lo um cult movie ou um dramalhão
sobre sexo e culpa cristã. Esqueça as comparações apressadas com Shame, de
Steve McQueen, um filme pobre, limitado a contar a história de um viciado
sexual. Esqueça o sexo, esqueça também o erotismo, a fantasia, o calor e, sobretudo,
esqueça o amor. Esqueça tudo isso ao menos por um momento, pois quando o filme
começar você terá muito o que ver e pensar, sua inteligência e sensibilidade
serão requisitadas, então se acalme. Ninfomaníaca se inicia no escuro e assim permanece por
longos segundos silenciosos, artifício estético que contrasta de maneira
paradoxal com o falatório incentivado pelo diretor e pelos produtores
comerciais do filme.
Sim, Ninfomaníaca é um filme interessante porque composto de paradoxos. O
primeiro e mais importante destes paradoxos é o de que ele é e não é um filme
sobre sexo. Claro que há nele inúmeras cenas de relações sexuais, como, aliás, poucos
filmes comerciais ousaram fazer até agora. No entanto, a verdadeira ousadia não
está no fato de que a jovem Joe, belamente interpretada pela novata Stacy
Martin, transe com qualquer um e que tudo nos seja mostrado em cenas
(quase) explícitas. Não, o importante está justamente em que nesta primeira etapa do filme o sexo não seja
sinônimo de busca do prazer, não se confunda com a busca de afeto, não seja o
elemento central de uma ou muitas relações amorosas.
Pelo contrário, o sexo é ali a
arma letal com que Joe quer se livrar do amor e de toda relação amorosa
possível, assassinando-os. Mas o que começa de maneira vulgar e simplória, como jogo
ou competição entre amigas para ver quem consegue ‘fisgar’ mais
homens numa viagem de trem, rapidamente assume o estatuto de fim em si mesmo,
convertendo-se em vício sexual que mutila a vida de Joe (Charlotte Gainsbourg),
resumindo-a a ser pouco mais que a repetição desvairada de atos sexuais desprovidos
de sentido.
Para prosseguir com a lista dos paradoxos, Ninfomaníaca é um filme gélido, cortante, nele quase não há luz ou calor. Mas, por outro lado, há nele também
muito acolhimento e cuidado, estampados nos papéis masculinos do pai (Christian
Slater) de Joe e do enigmático Seligman (Stelan Skarsgaard), que a recolhe em
frangalhos do meio da rua. O homem velho e culto, sobre o qual nada se sabe, parece assumir a posição de um
psicanalista que ouve as histórias de Joe e se limita a pontuá-las com breves comentários, que parecem pretender auxiliar Joe a se descolar da severidade dos juízos morais que ela dirige contra si
mesma, abrindo espaço para a possível descoberta do sentido errático de sua vida. Se pensarmos em Anticristo e
Melancolia, esta será a primeira vez que von Trier nos oferece personagens
masculinos sábios e afetuosos, distantes do estereótipo do cientista
prepotente, autoritário e, ao final, sempre impotente.
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Para concluir a série dos paradoxos, Ninfomaníaca é um filme deprimente, mas talvez também seja o filme
menos dramático de von Trier em muitos anos. Ele chega, inclusive, a nos dar a rara oportunidade de rir, ainda que apenas discretamente e por breves instantes, sobretudo na cena do melodrama seco, interpretada por Uma Thurman.
Finalmente, o filme ainda é capaz de reunir Bach http://youtu.be/X9Dh43kVL1Q, César Franck http://youtu.be/fmPGgvavvRw e o heavy-metal
alemão que abre e encerra a sua primeira metade. http://youtu.be/s2e8HDWameo
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