sábado, 4 de janeiro de 2014

Tatuagem e o novo cinema brasileiro




Como falar de Tatuagem, para mim (e para muita gente mais) o melhor filme brasileiro de 2013? É difícil até mesmo caracterizar a dificuldade em falar dele. E no entanto o filme não é hermético, não é um filme de intelectuais para intelectuais, não contém grandes ousadias narrativas ou estéticas, embora escape ao padrão da atual narrativa cinematográfica nacional ou estrangeira, sempre muito linear e didático-explicativa. 

O que torna difícil escrever sobre ele é a sutileza com que Hilton Lacerda, talvez o melhor roteirista da atualidade, fabricou sua intricada tessitura narrativa, intercalando acontecimentos de natureza e escala diversas, os quais se contrapõem e se misturam sem se superpor ou se anular. De fato, o filme se constrói em torno à contraposição entre a vida no exército (em pleno regime militar) e o teatro popular, o cabaré Chão de Estrelas; entre a vida comunitária na capital Recife e a modorra da vida familiar no interior profundo de Pernambuco; entre o amor e o sexo heterossexuais e o amor e o sexo homossexuais; entre a ordem disciplinar e o deboche crítico e criativo; entre o presente narrado, o ano de 1978, e o futuro ao qual a criança e o filme dentro do filme fazem alusão, qual mensagem lançada ao mar em garrafa que hoje nos chega, em pleno século 21.


Muitos aspectos mereceriam comentário detido, como a trilha sonora produzida pelo DJ Dolores, cheia de novos achados (Johnny Hooker) e releituras, como a bela canção de Caetano Veloso, “Esse cara”, interpretada pelo melhor ator do cinema nacional nos dias de hoje, Irandhir Santos. Pense nos melhores filmes nacionais recentes e você o encontrará em mais da metade deles...




Há também as interpretações primorosas de Jesuíta Barbosa, Rodrigo Garcia e Sylvia Prado, todos de um desprendimento e de uma veracidade exemplares; há o colorido solar de um filme cheio de esperança boêmia e alegria praieira; e, sobretudo, há as imagens filmadas em super-8 pelo filósofo-cineasta (Silvio Restiffe), imagens de caráter totêmico e onírico

Elas condensam em cor, luz e ritmo as utopias de um país (im)possível, amarrando o passado do cinema (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Felini e Pasolini) às suas possibilidades contemporâneas. 
Dentre tanta coisa positiva e interessante a se comentar e discutir, penso que a comunicação sutil entre passado e presente é um dos traços que melhor respondem pelo sucesso da mágica bem realizada por Lacerda. Este me parece ser também o traço que faz de Tatuagem um filme-irmão de Febre do rato, de Claudio Assis, com roteiro do mesmo Hilton Lacerda, bem como um filme irmanado ao documentário de Tatiana Issa, Dzi Croquetteshttp://okupacao.blogspot.com.br/2010/12/dzi-croquettes-documentario.html


Tatuagem fala do passado e de experiências estéticas, políticas e afetivas que se perderam no tempo, mas que cada vez mais começam a se tornar audíveis, compreensíveis e significativas em nosso presente. Dentre os elementos que permitiriam estabelecer esses elos frágeis entre passado e presente nomeio a vida comunitária e marginal, quase diria, inspirado em Foucault, a vida cínica e vivida à margem das formas hegemônicas do viver, amar e transar. Motivo pelo qual nessa vida ‘outra’ e em comum, o sexo, o corpo e o deboche são fios condutores que não apenas amarram como aproximam Tatuagem, Dzi Croquettes e Febre do rato

Ora, como não reconhecer semelhanças e afinidades entre estes filmes estético-políticos e manifestações políticas de inspiração queer de nosso tempo como a Marcha das Vadias, orientada pelos mesmos elementos criativos, contestadores e críticos, aggiornados para nosso tempo? (Sobre a Marcha das Vadias: http://okupacao.blogspot.com.br/2013/07/marcha-das-vadias-2013-ironia-como.htmlhttp://okupacao.blogspot.com.br/2012/07/marcha-das-vadias-em-curitiba-2012.html);http://okupacao.blogspot.com.br/2013/07/feminismo-vadio-publicado-em-12072013.html

Ontem como hoje, o deboche cínico, a criatividade espontânea e instantânea, a contestação dos padrões normativos de gênero, sexo e etnia, tudo isso amarra presente e passado, anunciando promessas de futuro. E o cinema brasileiro, quando reflete sobre sua própria história e sobre a história brasileira continua a nos oferecer o que temos de melhor. 

Por tudo isso, O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, há de ser mencionado como outra excelente produção cinematográfica do ano que acaba de acabar. Mas para falar deste filme que investiga a reprodução de nossa estagnação histórica, que faz com que o que de pior tivemos em nosso passado se congele e demore muito a passar, já seria preciso começar um novo post...


De todo modo, as ideias aqui apresentadas não passam de ensaio visando preparar o caminho para reflexões mais apuradas e alongadas sobre o novo cinema brasileiro, pois muito ainda há que pensar a respeito dos filmes que mencionei aqui, para não falar naqueles que ficaram de fora...



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