Como falar de Tatuagem, para mim (e para muita gente
mais) o melhor filme brasileiro de 2013? É difícil até mesmo caracterizar a dificuldade em falar dele. E no entanto o filme não é hermético, não é um
filme de intelectuais para intelectuais, não contém grandes ousadias narrativas
ou estéticas, embora escape ao padrão da atual narrativa cinematográfica nacional ou estrangeira, sempre muito linear e didático-explicativa.
O que torna difícil escrever sobre ele é
a sutileza com que Hilton Lacerda, talvez o melhor roteirista da atualidade, fabricou sua intricada tessitura narrativa, intercalando
acontecimentos de natureza e escala diversas, os quais se contrapõem e se misturam sem
se superpor ou se anular. De fato, o filme se constrói em torno à contraposição entre
a vida no exército (em pleno regime militar) e o teatro popular, o cabaré Chão de Estrelas; entre a vida
comunitária na capital Recife e a modorra da vida familiar no interior profundo
de Pernambuco; entre o amor e o sexo heterossexuais e o amor e o sexo
homossexuais; entre a ordem disciplinar e o deboche crítico e criativo; entre o
presente narrado, o ano de 1978, e o futuro ao qual a criança e o filme dentro do filme fazem alusão, qual mensagem lançada ao mar em garrafa que hoje nos chega, em pleno século 21.
Muitos aspectos mereceriam
comentário detido, como a trilha sonora produzida pelo DJ Dolores, cheia de novos achados
(Johnny Hooker) e releituras, como a bela canção de Caetano Veloso, “Esse
cara”, interpretada pelo melhor ator do cinema nacional nos dias de hoje, Irandhir Santos. Pense nos melhores filmes nacionais recentes e você o encontrará em mais da metade deles...
Há também as interpretações primorosas de Jesuíta Barbosa, Rodrigo
Garcia e Sylvia Prado, todos de um desprendimento e de uma veracidade exemplares; há o
colorido solar de um filme cheio de esperança boêmia e alegria praieira; e,
sobretudo, há as imagens filmadas em super-8 pelo
filósofo-cineasta (Silvio Restiffe), imagens de caráter totêmico e onírico.
Elas condensam em cor, luz e
ritmo as utopias de um país (im)possível, amarrando o passado do cinema (Glauber
Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Felini e Pasolini) às suas possibilidades contemporâneas.
Dentre
tanta coisa positiva e interessante a se comentar e discutir, penso que a comunicação sutil entre
passado e presente é um dos traços que melhor respondem pelo sucesso da mágica bem
realizada por Lacerda. Este me parece ser também o traço que faz de Tatuagem um filme-irmão de Febre do rato, de Claudio Assis, com
roteiro do mesmo Hilton Lacerda, bem como um filme irmanado ao documentário de
Tatiana Issa, Dzi Croquettes. http://okupacao.blogspot.com.br/2010/12/dzi-croquettes-documentario.html
Tatuagem fala do passado e de experiências estéticas, políticas e
afetivas que se perderam no tempo, mas que cada vez mais começam a se tornar
audíveis, compreensíveis e significativas em nosso presente. Dentre os
elementos que permitiriam estabelecer esses elos frágeis entre passado e
presente nomeio a vida comunitária e marginal, quase diria, inspirado em
Foucault, a vida cínica e vivida à margem das formas hegemônicas do viver, amar
e transar. Motivo pelo qual nessa vida ‘outra’ e em comum, o sexo, o corpo e o
deboche são fios condutores que não apenas amarram como aproximam Tatuagem, Dzi Croquettes e Febre do
rato.
Ora, como não reconhecer semelhanças e afinidades entre estes filmes
estético-políticos e manifestações políticas de inspiração queer de nosso tempo como a Marcha das Vadias, orientada pelos
mesmos elementos criativos, contestadores e críticos, aggiornados para nosso tempo? (Sobre a Marcha das Vadias: http://okupacao.blogspot.com.br/2013/07/marcha-das-vadias-2013-ironia-como.html; http://okupacao.blogspot.com.br/2012/07/marcha-das-vadias-em-curitiba-2012.html);http://okupacao.blogspot.com.br/2013/07/feminismo-vadio-publicado-em-12072013.html
Ontem como hoje, o deboche cínico, a
criatividade espontânea e instantânea, a contestação dos padrões normativos de
gênero, sexo e etnia, tudo isso amarra presente e passado, anunciando promessas
de futuro. E o cinema brasileiro, quando reflete sobre sua própria história e
sobre a história brasileira continua a nos oferecer o que temos de melhor.
Por tudo isso, O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho,
há de ser mencionado como outra excelente produção cinematográfica do ano que
acaba de acabar. Mas para falar deste filme que investiga a reprodução de nossa
estagnação histórica, que faz com que o que de pior tivemos em nosso passado se
congele e demore muito a passar, já seria preciso começar um novo post...
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